República Árabe Saharaui Democrática


O POVO QUE O MUNDO ESQUECEU


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Bem-vindos ao blog phoenixsaharaui.blogspot.com.br


A criação deste espaço democrático visa: divulgar a causa Saharaui, buscar o reconhecimento pelo Brasil da República Árabe Saharaui Democrática e pressionar a União Européia, especialmente a Espanha, a França e Portugal, mais os EUA, países diretamente beneficiados pela espoliação dos recursos naturais do povo Saharaui, para retirarem o apoio criminoso aos interesses de Mohammed VI, Rei do Marrocos, e com isto permitir que a ONU prossiga no já tardio processo de descolonização da Pátria Saharaui, última colônia na África.


Membro fundador da União Africana, a RASD é reconhecida por mais de 82 nações, sendo 27 latino-americanas.


Nas páginas que seguem, você encontrará notícias do front, artigos de opinião, relato de fatos históricos, biografias de homens do porte de Rosseau, Thoreau, Tolstoy, Emersom, Stuart Mill e outros que tiveram suas obras imortalizadas - enxergaram muito além do seu tempo - principalmente em defesa da Liberdade.


"Liberté, Égalité, Fraternité", a frase que embalou tantos sonhos em busca da Liberdade, é letra morta na terra mãe.


A valente e obstinada resistência do povo Saharaui, com certeza encontraria em Jean Molin - Herói da resistência francesa - um soldado pronto para lutar contra a opressão e, em busca da Liberdade, morrer por sua Pátria.


A Literatura, a Música, a Pintura e o Teatro Saharaui estarão presentes diariamente nestas páginas, pois retratam fielmente o dia-a-dia deste povo, que a despeito de todas as adversidades, em meio a luta, manteve vivas suas tradições.


Diante do exposto, rogamos que o nosso presidente se afaste da posição de neutralidade, mas que na verdade favorece os interesses das grandes potências, e, em respeito a autodeterminação dos povos estampada como preceito constitucional, reconheça, ainda em seu governo, a República Árabe Saharaui Democrática - RASD.


Este que vos fala não tem nenhum compromisso com o erro.


Se você constatar alguma imprecisão de datas, locais, fatos, nomes ou grafia, gentileza comunicar para imediata correção.


Contamos com você!


Marco Erlandi Orsi Sanches


Porto Alegre, Rio Grande do Sul/Brasil

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O REINO DE DEUS ESTÁ EM VÓS - TOLSTOI

TOLSTÓI, THOREAU, GANDHI, LUTHER KING, MANDELA...




Apresentação Fr. Clodovis Boff

Esta obra importante e praticamente desconhecida entre nós pede uma apresentação. Pelo fato de fugir a toda siste-maticidade, pareceu-nos oportuno evidenciar aqui sintetica­mente suas linhas de força. E porque suas posições são abso­lutamente originais e radicais, achamos conveniente oferecer também alguns elementos de apreciação. E ainda, para atualizar sua leitura, destacamos alguns pontos de contacto que ela oferece com nossa própria realidade religiosa e social.


O livro na vida e obra do autor

O livro que temos em mãos é, entre os ensaios, a obra-prima de Tolstoi. Pertence ao segundo período da vida do es­critor, depois que ele passou por uma violenta crise espiritual quando completara os cinquenta anos (1878). Em seu livro, Minha Confissão (1882), conta que, cansado de seus munda­nos êxitos literários (já havia publicado Guerra e Paz em 1868, e Ana Karenina em 1875 — romances que o fizeram, já em vida, mundialmente famoso), parte em busca da fé viva. Pri­meiro, entabula debates com os filósofos do tempo, e nada. Depois frequenta os teólogos. Estes também não lhe deram a luz desejada. Finalmente mete-se no meio do povo pobre.

Aí dá-se conta do que é na verdade a fé para aquela gen­te. Percebe que para os pobres a fé não é assunto de con­versas inconsequentes, mas uma questão vital. "Só a fé lhes dava possibilidade de viver." É isso que provoca sua con­versão.

Depois disso, Tolstoi passa a se dedicar menos à literatu­ra e mais ao género ensaístico. Entende sua tarefa de escritor como uma verdadeira missão religiosa. Já que não pode fazer mais, quer pelo menos pôr a pena a serviço de Deus. Escrever torna-se para ele, como afirma em seu Diário, uma "necessi­dade diante de Deus" (28/10/1895). Quando escreve, sente-se inspirado por Deus: 'Teço a todos os meus amigos, vizi­nhos e distantes... que prestem atenção àquela parte de mi­nha obra na qual, eu sei, falava através de mim a força de Deus — e a utilizem para a sua vida..." (Diário, 27/3/1895). Até o fim de sua longa vida (viveu 92 anos) só de ensaios pro­duziu mais de duzentos títulos. Sua obra completa chega a no­venta volumes nas "Edições de Jubileu" (Moscou, 1928-1958).

Pois bem, O Reino de Deus Está em Vós representa a obra máxima de Tolstoi. Em comparação dela, ao autor seus já fa­mosos romances parecem-lhe obras menores. Em seu Diário, chega a declará-los "tolices" (6/12/1908), algo próximo a ser­viços de alcova; mais propriamente, conversa fiada de feiran­te para atrair fregueses com o objetivo de lhes vender depois outra coisa, bem diferente (Diário, 28/10/1895).

Foi a obra que lhe custou mais trabalho, como confes­sou ao fiel secretário Chertkov. Levou três anos para terminá-la (1890-1893), justamente no momento em que o escritor che­gava ao cume de sua maturidade intelectual — 65 anos de ida­de. A dificuldade não era só a relevância e a originalidade do tema, mas também o fato de ter que andar por toda a parte organizando refeitórios populares para ajudar os pobres a ven­cer a terrível crise de 1891. Como se vê, Tolstoi era um escri­tor verdadeiramente comprometido com os humildes.

O destino desta obra foi singular. Imediatamente tradu­zida nas principais línguas europeias, suscitou logo de início reações contraditórias: aplausos de um lado e espanto do outro.

Mas o leitor "que melhor aproveitou de suas lições foi Gandhi”. Este leu o trabalho em inglês em 1894, um ano de­pois de sua publicação em russo. Caiu-lhe nas mãos de um modo absolutamente providencial. De fato, aquele que iria tornar-se o Mahatma encontrava-se então "numa grave crise de ceticismo e dúvida", como ele mesmo conta. Acreditava ainda no caminho da violência. Pois bem, "a leitura do livro — em suas palavras — me curou do ceticismo e fez de mim um firme seguidor da ahimsa". Passa então a usar o livro co­mo seu vademecum. Levou-o consigo para a prisão em 1908 e deu-o de presente a vários parentes e amigos. Gandhi decla­rou que Tolstoi era o "maior apóstolo da não-violência" e o homem "mais autêntico de seu tempo".

Na Rússia o livro recebe uma dupla condenação: é vetado pelo regime czarista e seu autor é excomungado pela igreja or­todoxa. É que no livro, como se verá, Tolstoi recusa radical­mente as ideias mesmas de Estado e de Igreja, considerando estas duas instituições como essencialmente opressoras do povo.

Quanto à opinião pública internacional, depois das pri­meiras reações contrastantes, relegou aquela obra profética ao esquecimento. Isso durou até há pouco, quando Tolstoi co­meça a ser redescoberto e difundido pelos diversos movimen­tos pacifistas. A edição que serviu de texto para a presente tradução brasileira é uma reprodução anastática da primeira edição (de 1894). Sai, portanto, quase cem anos depois. Uma reaparição tardia da obra traduzida do francês por Sofia Behr, esposa de Tolstoi, e "autorizada pelo autor", feita na Itália, em 1988 foi, pela contessa Tânia Tolstoi, acompanhada em sua reimpressão pela seguinte mensagem:

"Sou muito grata aos Editores e à organizadora, que se empenharam na reimpressão desta obra fundamental do pen­samento de meu avô. Após tantos anos de esquecimento, poder-se-á de novo perceber a luz que emana deste livro. Es­pero que muitos o leiam e que esta leitura os ajude a viver nessa nossa época tão atormentada."

Entre nós, mais que de esquecimento, deveríamos falar mesmo de falta de conhecimento. O Tolstoi que conhecemos é exclusivamente* o romancista, contista ou novelista, o primeiro Tolstoi, que o Tolstoi maduro, como vimos, menospre­zava. O Tolstoi ensaista-profeta, que nos é mais necessário, é uma novidade nos trópicos.

Mas por que essa parte decisiva da obra de Tolstoi foi posta de lado? É que o segundo Tolstoi, por sua mensagem altamente profética, e em particular no livro em questão, mostrava-se incómodo para a mentalidade chamada "moder­na", tanto de direita como de esquerda, tanto religiosa como laica. Seus questionamentos eram por demais fortes para o de­licado e ao mesmo tempo autoconfiante espírito do tempo.


A tese central do livro

O que Tolstoi sustenta em todo o livro é a validade social do preceito de Cristo no Sermão da Montanha: "Não resis­tais ao mal" (Mt 5,39). A frase se presta a ambiguidades. O sentido que Tolstoi defende é: não resistais ao mal cogyLifialJ ou seja, não respondais à violência com a violência.\Este é o sentido exato. Tolstoi não aceita a máxima jurídica comumente aceita: vim vi repellere (repelir violência com violência). Esta jamais pode ser legitimada apelando para o direito de "legíti­ma defesa". Porque a violência é sempre um mal, e não se pode responder ao mal com o mal. E isso, para ele, vale tanto para o cristão como para um cidadão qualquer.

Por outro lado, para Tolstoi, não se trata de permane­cer passivo frente ao mal ou à violência, mas de responder a ela pela não-violência: a bondade, a mansidão e a caridade. Esta é a verdadeira resistência ao mal, segundo Tolstoi. Efe-tivamente, o sentido de "não resistir" no Evangelho e no No­vo Testamento em geral não é "não fazer nada", mas não revidar, não contra-atacar, não retaliar, enfim, não se vingar. Assim, o que se rechaça sem meias medidas é a lei do talião, o pagar com a mesma moeda, "olho por olho, dente por dente".

Tolstoi leva extremamente a sério o preceito evangélico da não-violência. Levanta-se contra os que acreditam que a ordem de Cristo de "não-resistência ao mal" é algo de inexeqúível, especialmente do ponto de vista social; ou que é um piedoso exagero, carregado apenas de um valor simbólico. Não, para Tolstoi, os preceitos do Sermão da Montanha, no caso a não-violência, são realmente imperativos. Mas aten­ção: não se trata de leis morais ou regras jurídicas fixas que de­vam ser aplicadas mecanicamente. Não, são antes indicações de um ideal, apelos éticos, "via de perfeição infinita", como ele se exprime. São exigências morais absolutas, que têm a força de. pôr em movimento a relatividade do agir humano concreto./É verdade, tais preceitos têm um catáter assintótico: aproximam da perfeição divina ("sede perfeitos como o Pai do Céu é per­feito"), sem nunca chegar a atingi-la. Mas movem poderosamen­te a vontade naquela direção. Põem-na no caminho do divino. Para o profeta russo, tais preceitos não pertencem à es­fera exclusiva da religião ou da fé cristã. Eles traduzem o di­namismo mais profundo do espírito humano. Manifestam a essência da alma humana, cuja lei básica é a "lei do amor". Mexem com o divino que está dentro de cada pessoa huma­na. Donde, como título do livro, a frase de Jesus: "O Reino de Deus está em vós" (Lc 17,21). Por isso essa doutrina vale para cada um e para toda sociedade. A não-violência não diz respeito apenas ao cristão, mas sim a toda a pessoa em geral. É, portanto, uma lei que deve animar e governar toda socie­dade humana, digna deste nome.

Para representar o caráter singular dos radicais preceitos evangélicos, Tolstoi usa a bela comparação do barqueiro, que, para chegar à outra margem de um rio rápido, não pode se dirigir em linha reta, mas deve remar contra a corrente.

A não-violência tolstoiana se exprime na não-cooperação, na desobediência civil e particularmente no repúdio ativo a toda a servilidade. Tolstoi sabe que o poder se alimenta da aceita­ção e do consenso. Pior: da obediência cega e da submissão. Contrapondo-se a isso, quer tirar ao poder o tapete debaixo dos pés, para que assim venha ao chão. A ética de Tolstoi é radicalmente libertária. Para ele, a liberdade é um atributo ina­lienável e definitório do ser humano. Por isso, entre as frases que pôs no frontispício do livro, lemos esta de São Paulo: "Não vos torneis servos dos homens" (ICor 7,23).

Tolstoi não acredita nos efeitos libertadores de uma revolu­ção violenta, mesmo de tipo popular. Considera-a, em primei­ro lugar, politicamente inviável, levando-se em conta a complexi­dade e a potência do Estado moderno. Em segundo lugar, tem-na por ineficaz, pois instauraria necessariamente uma opressão mais cruel que a anterior. Por isso, se levanta conta os socialis­tas, comunistas e anarquistas de seu tempo por pretenderem mu­dar a sociedade sem se mudarem a si próprios. Ataca também sua concepção totalitária do Estado, segundo a qual a própria vida familiar e privada ficaria sob a viligância da polícia esta­tal, vida essa que o sistema liberal vigente tinha pelo menos res­peitado. Foi, na verdade, o que se verificou no regime de Goulag. Como se vê, Tolstoi não era apenas certeiro em suas percepções analíticas, mas também em suas intuições proféticas.

Seja como for, a história está dando razão a Tolstoi: o prin­cípio ético da não-violência está se impondo cada vez mais em nosso dias. Nesse sentido pode-se afirmar, com o profeta rus­so, um amadurecimento da consciência moral da humanidade. A Também porque a violência se mostra cada vez mais ineficaz pa­ra resolver os conflitos sociais, tanto no interno das nações co­lmo nas relações internacionais. Retomando uma distinção de TCant, é possível constatar certo progresso em termos de legali­dade (no nível dos princípios), embora não necessariamente em termos da moralidade (no nível das práticas). Parece inegável que na consciência mundial emerge com força crescente uma sensibilidade ética em favor da não-violência. Também por ra­zões práticas: frente à complexidade dos Estados e das socie­dades modernas, a violência não funciona mais. Aquela que foi outrora definida como a "parteira da história" talvez não te­nha outro destino, na consciência ética das sociedades moder­nas, que o de tantas parteiras tradicionais: a aposentadoria.


O antiestatismo radical de Tolstoi

A defesa intransigente da não-violência, em Tolstoi, vai junto com a deslegitimação absoluta do Estado, por ser uma instituição de violência.

No capítulo VII o escritor faz um processo em regra do sistema governamental. Volta sobre essa tese também em ou­tros capítulos, como no VIII, no X e no XII, o último. Çfíri-a violência encarnada. E não só o Estado autocrático, como o czarista, mas todo Estado, inclusive o de­mocrático. Nesse, a violência apenas deixaria de ser concen­trada para ser mais difusa, mas não desapareceria por isso.

O rosto violento do Estado aparece claramente na insti­tuição do exército. Para Tolstoi, o exército, mais que para a defesa externa, existe para subjugar o povo em benefício de uma minoria. É o sustentáculo da tirania./Sua função extre­ma é matar. Ora, isso é sempre um crime — coisa proscrita terminantemente no V mandamento. Para nosso profeta, a vida é um valor absoluto. Não existem mortes legítimas. Por isso, mandando matar, o exercito transiormao soldado num carrasco. Tal é o que pensa o grande escritor.

A consequência é que para Tolstoi o serviço militar deve ser condenado sem remissão. Trata-se para Tolstoi nada me­nos do que uma preparação ou exercício para o assassinato. Mais: a seu ver, o serviço militar obrigatório é o modo pérfi­do que temo Estado de armar o irmão contra o irja|o, de pôr o povo contra o povo, ou seja: é uma forma especiosa de autotirania.

Tolstoi foi um antimilitarista absoluto. Junto com o ser­viço militar, recusa qualquer legitimação à guerra. Se a cultu­ra moderna a legitima por vários títulos (cap. VI) é porque é fútil e destituída de vigor ético. Pressentiu para onde pode­ria levar a mentalidade belicista das potências europeias no fim do século passado. Chegou a prever profeticamente (pelo fim dos cap. X e XII) o horror de um conflito mundial, que efetivamente irrompeu com a primeira Grande Guerra.

Por tudo isso, Tolstoi propõe que se recuse decididamente a fazer qualquer coisa que contribua de alguma forma para a perpetuação do sistema governativo e seus tentáculos: o exer­cício da política, o serviço militar, o pagamento dos impos­tos, o uso dos serviços da justiça e assim por diantre. O homem livre e justo há de viver ignorando o governo./Não combatê-lo de frente, mas no princípio interno que o sustenta: o reconhecimento, a obediência. Nisso Tolstoi se aproxima clara­mente de H. Thoreau (11862) e sua "desobediência civil".

Uma outra instituição estatal que recebe o rechaço reso­luto de Tolstoi é o sistema judiciário. Este também é o supor­te — agora legitimador — da violência do Estado (cap. X). Ademais, os tribunais exigem o juramento. Ora, Cristo proí­be o juramento do modo mais formal: "Não jureis de modo algum" (Mt 5,34). Também nesse campo é impossível moral­mente colaborar com o sistema judiciário existente para não favorecer a ordem violenta de que é o garante legal.

Mas seria Tolstoi por tudo isso um anarquista? Ele con­fessa: "Não sou anarquista, mas cristão." Contra os anarquistas e suas bombas e dinamites, defende intransigentemente a não-violência. Acrescenta que os profetas da não-violência são muito mais perigosos para o Estado do que quaisquer preten­sos revolucionários, sejam socialistas, comunistas ou anarquis­tas. Pois o Estado sabe muito bem tratar com estes, que jogam pelas mesmas regras, mas já não sabe como se haver com os adeptos da não-violência, que se situam num campo onde o ^ o) â Estado já está de antemão derrotado (cap. IX).

A esta visão política, ou melhor, antipolítica do profeta pode-se perguntar antes de tudo se é realista, se não é meramente utópica. Certo, Tolstoi sabe que existem conflitos na sociedade e que é preciso manter certa ordem social. Mas acha que para isso não se precisa de um Estado, mas de uma socie­dade civil madura. Acredita na força da consciência moral coletiva, que chama de "opinião pública".

Mesmo assim, pode-se perguntar se é possível algum dia na sociedade prescindir de um órgão central de coordenação e direção. Para as nossas sociedades complexas de hoje isso parece muito difícil, senão impossível. Como podem funcio­nar corretamente sem um governo qualquer?

Todavia, da provocação profética de Tolstoi pode-se ex­trair seu núcleo positivo. Não nos indica a direção em que se há de levar a constituição de um Estado diferente, cada vez mais aliviado das funções de força e cada vez mais reduzido a funções simplesmente administrativas? Não se trata efeti-vamente de o Estado se ocupar cada vez mais da "administração das coisas" e cada vez menos do "governo dos ho­mens"? E mesmo que a função "política" do Estado seja fi­nalmente irredutível (e nisso talvez Tolstoi se equivoque), não deve ela idealmente se reduzir aos limites mínimos possíveis? Nessa linha, não é perfeitamente pensável e desejável a supe­ração gradual do sistema repressivo-defensivo (exército, polí­cia etc.)?


Desqualificação total da igreja

Para Tolstoi, a igreja é outro sustentáculo da violência, na medida em que a mistifica, através de sua prédica pseudo-| evangélica, e a sacraliza, com seus rituais "supersticiosos" e '"idolátricos".

Por isso, a crítica tolstoiana à igreja é igualmente arrasa­dora (cap. III). Concerne não apenas a esta ou àquela igreja concreta, mas à ideia mesma de igreja (cap. III). Em suas pala­vras, "cada igreja, como igreja, sempre foi e não pode deixar de ser uma instituição não só alheia, mas até diretamente oposta à doutrina de Cristo”. As igrejas não seriam apenas infiéis a Cristo, mas até hostis ao cristianismo. Seriam fundamen­talmente anticristãs. E se nelas se encontram pessoas santas e boas, isso se deveria à própria virtude dessas pessoas e não à sua pertença à igreja. São João Crisóstomo, São Francisco seriam bons apesar da igreja e não por causa dela.

Para Tolstoi, as igrejas são instituições intrinsecamente mentirosas. Sua função não é de revelar a doutrina de Cristo, mas antes de escondê-la, enganando as pessoas, mentindo ao povo. Todo o rico sistema simbólico da igreja: velas, cantos, bandeiras, sinos, paramentos, procissões, pinturas etc. é vi­rulentamente atacado como um meio para "hipnotizar", im­pressionar e adormecer a consciência do povo. E lança às igrejas um repto final: têm que escolher entre o Sermão da Montanha e o Símbolo de Nicéia, entre o Evangelho e o Dogma.

Em outro passo (no cap. VIII), Tolstoi levanta a hipóte­se de se a corrupção do cristianismo não foi necessária para sua difusão num mundo ainda pouco desenvolvido, do ponto de vista moral. Está por outro lado convencido de que hoje chegou a hora de entender e assimilar o cristianismo em sua forma pura, porque até hoje os cristãos não teriam compreen­dido sua verdadeira essência.

À parte sua presunção inegável, Tolstoi nos parece aqui, mais ainda que para o Estado, excessivamente enfático e pouco convincente. Produz mais denúncias proféticas que análises argumentadas. Ademais, sua tese nem sempre é coerente. Pois se a igreja como tal é anticristã, não há por que escolher entre o Evangelho e Nicéia; o certo seria desaparecer. Igualmente, liquidar, em nome do povo, com todo o sistema cristão de re­presentação, que o mesmo povo tanto preza e donde tira tan­ta força, não é contraditório? Que esse sistema tenha servido para alienar o povo, não lhe altera por isso a natureza.

Seja como for, a radical profecia antieclesiástica de Tols­toi pode e deve ser ouvida. Seu extremismo tem uma função singularmente catártica para as igrejas. É um apelo à conver­são e à fidelidade às mais altas exigências do Evangelho. Na verdade, a nenhuma instituição se aplica melhor o adágio: corruptio optimipessima (a corrupção do ótimo é péssima). Mas é preciso reconhecer que nas últimas décadas as igrejas em geral retomaram o papel dos profetas bíblicos face aos reis. E no que toca particularmente ao militarismo, estão redescobrin-do sua primitiva opção pela não-violência radical, vigente nos primeiros séculos, pleiteando pela proscrição total da guerra e de toda solução de força na resolução dos conflitos.


Atualidade de Tolstoi

A força deste livro consiste precisamente em articular pro­fecia e transformação social. Toca justamente no fulcro da questão que agita hoje a Teologia da Libertação e os cristãos em geral: a relação fé e política. Mas Tolstoi o faz de um mo­do todo original.

Em primeiro lugar, com relação à fé, postula uma volta decidida às fontes do cristianismo, para aquém de todas as tradições eclesiais. Nisso ele é literalmente radical: quer ir à raiz da proposta cristã. Sua relação é diretamente com o Evangelho.

Para Tolstoi, a religião cristã se entende essencialmente como profecia (cap. V). Não no sentido de prever o futuro, mas de antecipá-lo. O profeta é o que antevê em que direção vai o curso das coisas. Nisso se antecipa às maiorias. Essas, em virtude mesmo da profecia, acabam vendo o que ele já via. É sempre um precursor, um ser inaugural. Por isso mesmo só pode ser compreendido depois. Seu êxito só pode ser pós­tumo. Por isso, para Tolstoi, a religião, porque profecia, é sempre exigência infinita, chamado para frente, busca do sem­pre mais, antecipação do que virá.

Em termos de evolução histórica, o cristianismo não está atrás, mas à frente. Contudo, a história não está aí para pro­var que o cristianismo faliu? Ao contrário, responde o profe­ta, o cristianismo não só não faliu, como ainda não foi inteiramente experimentado. Na verdade, ainda não amadu­receu em todas as suas virtualidades (cap. VIII)./Por isso mes­mo Tolstoi ataca a intelectualidade moderna por pretender julgar o cristianismo a partir de um "conceito pagão de vi­da". Ora, isso é julgar o superior a partir do inferior; é "jul­gar o campanário, olhando para o alicerce", segundo suas próprias palavras.

Para Tolstoi, o cristianismo não é uma doutrina abstrata (para se saber), mas uma proposta prática (para se viver). Pa­rafraseando uma célebre tese de Marx, a fé não pode se con­tentar em interpretar o mundo, mas deve, isto sim, mudá-lo (cap. V). Daí o subtítulo original ao livro em estudo: "O cris­tianismo apresentado não como uma doutrina mística, mas como uma moral nova."

Por isso mesmo, para nosso autor, a mensagem evangé­lica não é coisa de igreja, mas coisa comum de todos. É patri­mónio da humanidade, que, na verdade e em seu prejuízo, dele faz pouco caso. Não se trata, pois, de uma moral meramente corporativa, mas realmente universal, pois que foi anunciada no mundo e para o mundo. Por isso também ela não se dirige somente ao indivíduo, mas a toda a sociedade. Isso vale inclusive no que tange às supremas exigências do Sermão da Montanha, à condição, porém, de não transformá-las numa nova jurisprudência, mas também de não reduzi-las a simples figuras de linguagem (cap. II)./Nesse sentido, o pensamento tolstoiano contribui para destruir o monopólio eclesiástico ou clerical do Evangelho, a fim de colocar este livro de vida nas mãos de todos e assim universalizá-lo.

Do ponto de vista teológico, pode-se levantar a pergun­ta: Será que a concepção tolstoiana da fé não sofreu aí um processo de desescatologização radical, ficando assim reduzi­da à ética? Certamente o Reino está "em nós", mas não está também para além de nós? E não é nessa última dimensão que está o segredo da força ético-profética do cristianismo, im­pedindo-o de cair no simples moralismo?

Agora, do ponto de vista especificamente político, a pa­lavra de Tolstoi não é menos instrutiva. É preciso dizer que frente à sociedade ele se situa numa perspectiva assumidamente socialista. Em seu ensaio "Ao povo trabalhador" (1902) de­fendeu a propriedade comum da terra. E escreveu um traba­lho, infelizmente inacabado, precisamente "Sobre o socia­lismo" (1910).

Contudo sua concepção de socialismo era muito mais re­volucionária que a de tantos autoproclamados revolucioná­rios de ontem e de hoje. Em primeiro lugar, Tolstoi acha decisivas as questões ético-religiosas, de que é prova o pró­prio livro em análise. Acusa os revolucionários de só se preo­cuparem com as condições externas ("objetivas"), esquecendo que são eles mesmo que devem começar a mudar de vida. De­vem começar por vencer a contradição em que vivem, a qual lhe permite gozar dos benefícios do sistema, ao mesmo tem­po em que nutrem o desejo de derrubá-lo. E isso vale natural­mente também e sobretudo para os liberais. É dizer que Tolstoi se preocupava sobretudo com as "condições subjetivas" da revolução. Por falta dessas condições, previu aquilo que se tor­nou fenómeno no socialismo comunista: um grau de repres­são muito maior que a anterior. Também nesse sentido ele foi profeta.


Em seguida, deu muita importância às questões culturais.

Para Tolstoi, a revolução começava nas consciências. Ela cons­tituía antes de tudo um imperativo ético de justiça e, mais ra­dicalmente ainda, de verdade. Sabemos de sua imensa atividade no campo da promoção da educação popular. Para difusão de edições populares, chegou a fundar uma casa editora "O Mediador" (1884). Sua orientação educativa era claramente antiautoritária. Consiste para ele em desenvolver a liberdade das pessoas, despertá-las da "hipnotização" governamental e social. Trata-se, enfim, na linguagem de hoje, de dar-lhes condições de se desalienarem e, em positivo, de se conscientizarem. Nesse campo sua atividade literária foi vastíssima. Es­creveu desde catecismos, comentários ao Evangelho, até tra­tados pedagógicos, como Sobre a instrução popular, Os jo­vens do campo devem aprender de nós a escrever ou nós de­les?(título já de per si extremamente significativo), A escola de Iasnaia Po liana... e outros mais. Vê-se de imediato como em tudo isso Tolstoi mostrou-se um precursor de P. Freire e sua "pedagogia do oprimido", e também de I. Illich, na me­dida em que questionou a validade do sistema oficial de ensi­no, reputando-o um meio de submetimento das consciências ao sistema vigente.

Por fim, Tolstoi apresenta um lado surpreendentemente "ecologista". Pronunciou-se contra o progresso técnico indis­criminado, fez o elogio do amor à terra e da vida ligada à na­tureza, propôs o vegetarianismo, fez oposição à caça de animais, enfim, considerava que todo ser vivo tem direito a viver.


Tolstoi profeta: convertei-vos!

O que propõe finalmente o autor de O Reino de Deus Está em Vós? Nenhum sistema social muito definido. Como pro­feta que é, ele simplesmente grita: *'Convertei-vos, senão to­dos perecereis!" (Lc 13,3 e 5). Tolstoi pede a mudança de vida de cada um. A revolução não é para depois, é para já. Arran­ca da vida de cada um. A "saída" que indica o profeta é, pois, a entrada no Reino que vem chegando. Ora, no portão de acesso ao Reino está escrito com letras de fogo: "Convertei-vos, pois o Reino está próximo!''(Mc 1,15).Nisso Leon Tols-toi só tem de par outro profeta, este também de juba: Leão Bloy.

Mas cuidado: este individualismo ético-profético não é em absoluto um fechamento sobre si, mas antes um compro­misso pessoal com o outro, com a sociedade. É um individua­lismo aberto, solidário com os outros, que alguns poderiam chamar de personalismo. Nesse sentido, Tolstoi se comporta como todo profeta: devolve cada um a sua responsabilidade. A liberdade pessoal não se delega. Ela se exerce em primeira pessoa. Ora, só os livres podem construir a sociedade dos li­vres.

Como para Cristo, o que dá urgência ao apelo da con­versão é o agudo sentido do "kairós": "Completaram-se os tempos. O Reino de Deus está às portas!" (Mc 1,15). Os tem­pos estão maduros e está na hora de acordar. Nisso Tolstoi emerge como um profeta verdadeiramente apocalíptico. Ele anuncia a iminência do mundo novo. "Os campos já estão brancos para a ceifa" (Jo 4,35). E "quando o fruto está ma­duro, mete-se-lhe a foice, pois é tempo da colheita" (Mc 4,29).

Portanto, chegou a hora! Tolstoi assume aqui um tom apocalíptico: a casa está pegando fogo e não há mais tempo de se perguntar se é preciso sair ou não; o navio afunda e ur­ge lançar mão dos salva-vidas antes de afundar com ele; os pintinhos já não podem mais ficar no ovo e para sair já rom­pem a casca com o bico. São as comparações que Tolstoi usa para mostrar que os tempos estão maduros para uma socie­dade não-violenta, livre e igualitária.

Efetivamente, está convencido de que a consciência hu­mana amadureceu. Pois admite um progresso na compreen­são das exigências do cristianismo. Inicialmente, só o profeta e uma minoria de discípulos, por via da intuição, compreen­dem certas verdades. Mas estas vão ganhando as maiorias me­diante a experiência e acabam, pouco a pouco, se impondo. Ora, as mais altas exigências do Sermão da Montanha, como o preceito da "não-resistência ao mal com o mal", se impõem cada vez mais, a partir das próprias experiências históricas, como o caminho certo para uma sociedade mais elevada que a anterior.

Tolstoi percebe um crescimento de consciência nessa di-reção, embora as práticas ainda marquem passo. Vê um sinal disso no fato de que a sociedade atual, que vive ainda segun­do o *'conceito pagão de vida", sente agudamente a contra­dição entre sua vida pagã de opressão e sua consciência cristã de fraternidade. Acha mesmo que os próprios ricos e podero­sos já têm vergonha de gozar de seus privilégios e procuram escondê-los o quanto podem. Da parte da sociedade em geral cresce o desprestígio dos grandes. Não estaríamos aqui diante de sinais indicadores de que o processo histórico de dissolu­ção da violência estatal e do militarismo já se iniciou do pon­to de vista cultural, ou seja, no campo da sensibilidade ética? — É verdade — e ele o sabe —, essa consciência ainda é coisa de uma minoria profética. Mas pode despertar os outros. E este seu livro já não representa um despertador eficaz dessa nova fase da história?

Mas, em que consiste precisamente a conversão a que con­voca Tolstoi? Essencialmente nisso: Dizer a verdade, não men­tir. Pois só assim — acredita — se rompe o círculo da "me­tafísica da hipocrisia" em que está enredado o mundo mo­derno. O apelo de Tolstoi é este: Viver à luz da verdade, sem máscaras. Ele acredita que assim, à força da verdade, as rela­ções na sociedade se transformarão. Por isso, pôs no frontis­pício do livro esta outra máxima: "E conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres" (Jo 8,32).

Certamente que isso só é insuficiente para mudar uma so­ciedade. Parece pouco, mas é o ato inaugural de toda mudan­ça autêntica. Pois irrompe do núcleo ético da verdaderia prática política. E não é sem efeitos concretos, como se pode ver nos dissidentes russos, como Solzhenitsin, que na ética da verda­de tiveram em Tolstoi o modelo de profeta. Porque "a luz resplandece nas trevas e as trevas não podem ofuscá-la" (Jo 1,5).

Oxalá o profético livro de Tolstoi possa lançar sobre nossa triste e degradada realidade sua provocante luz ético-libertadora!


Cronologia da vida de Tolstoi

1828 — 28 de agosto: Leon Tolstoi nasce em Jasnaia Poliana, em Tuia, cerca de 180km de Moscou. Quarto filho do Conde Nicolau Tolstoi. 1830 Morte da mãe.

1837 — Mudança para Moscou. Morte do pai. 1841 Mudança para Kazan, onde se prepara para a inscrição na universidade da cidade. 1847 Deixa depois de dois anos a universidade de Kazan e volta para Jasnaia Poliana.

1851 — Parte para o Cáucaso com o irmão, oficial do exército russo.

1852 — Publica com sucesso a sua primeira obra, Infância.

1854 — Em Sebastopol, como oficial do exército.

1855 — Assiste à queda de Sebastopol, que descreverá em con­tos famosos.

1857 — Primeira viagem à Europa.

1860 — Segunda viagem à Europa, onde, na França, morre o amado irmão Nicolau.

1861 — Fixa residência em Jasnaia Poliana, onde cria uma escola para camponeses.

1863 — Casa-se com Sofia Bers, de 18 anos, filha de um médico da corte. Viverá com ela pelo resto de sua vida, unido por intensa paixão amorosa e muitas vezes dividido por fortes incompreensões. Terá com ela 13 filhos, dos quais só nove chegarão à idade adulta.

1868 — Publica Guerra e Paz com grande sucesso.

1875 — Publica Anna Karenina. Outro grande sucesso. 1878 Profunda crise espiritual e sucessiva conversão. i881 Escreve A confissão, onde narra sua crise. 1884 Com Certkóv, seu fiel discípulo e secretário, funda a edi­tora O Mediador, para difundir edições populares. 1889 Publica Sonata a Kreuzer.

1891 — Organiza refeitórios para os camponeses famintos, du­rante uma grave carestia.

1892 — Doação à mulher e aos filhos de suas propriedades.

1893 — Publica (no exterior) O Reino de Deus está em vós. 1895 O fiel Certkov é exilado.

1899 — Publica Ressurreição.

1901 — É excomungado pelo Santo Sínodo da igreja Ortodoxa Viagem à Criméia por razões de saúde.

1906 — Morre a amantíssima filha Masha.

1908 — Escreve Não posso calar, contra as condenações à mor­te impostas pelo regime czarista. Escreve Carta a um hindu.

1910 — Devido à exacerbação das discórdias familiares, deixa sua casa no dia 28 de outubro. Adoece durante a via­gem e, na manhã de 7 de novembro, morre na casa do chefe da estação, em Astapovo.


E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará (Jo 8,32).

E não temais os que matam o corpo, mas não podem ma­tar a alma. Temei antes aquele que pode destruir a alma e o corpo (Mt 10,28).

Alguém pagou alto pelo nosso resgate; não vos torneis escravos dos homens (1Cor 7,23)

"Os jo­vens do campo devem aprender de nós a escrever ou nós de­les?" - Tolstoi


Fonte: http://www.reocities.com/projetoperiferia2/o_reino_tolstoi_1-2.htm

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