República Árabe Saharaui Democrática


O POVO QUE O MUNDO ESQUECEU


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Bem-vindos ao blog phoenixsaharaui.blogspot.com.br


A criação deste espaço democrático visa: divulgar a causa Saharaui, buscar o reconhecimento pelo Brasil da República Árabe Saharaui Democrática e pressionar a União Européia, especialmente a Espanha, a França e Portugal, mais os EUA, países diretamente beneficiados pela espoliação dos recursos naturais do povo Saharaui, para retirarem o apoio criminoso aos interesses de Mohammed VI, Rei do Marrocos, e com isto permitir que a ONU prossiga no já tardio processo de descolonização da Pátria Saharaui, última colônia na África.


Membro fundador da União Africana, a RASD é reconhecida por mais de 82 nações, sendo 27 latino-americanas.


Nas páginas que seguem, você encontrará notícias do front, artigos de opinião, relato de fatos históricos, biografias de homens do porte de Rosseau, Thoreau, Tolstoy, Emersom, Stuart Mill e outros que tiveram suas obras imortalizadas - enxergaram muito além do seu tempo - principalmente em defesa da Liberdade.


"Liberté, Égalité, Fraternité", a frase que embalou tantos sonhos em busca da Liberdade, é letra morta na terra mãe.


A valente e obstinada resistência do povo Saharaui, com certeza encontraria em Jean Molin - Herói da resistência francesa - um soldado pronto para lutar contra a opressão e, em busca da Liberdade, morrer por sua Pátria.


A Literatura, a Música, a Pintura e o Teatro Saharaui estarão presentes diariamente nestas páginas, pois retratam fielmente o dia-a-dia deste povo, que a despeito de todas as adversidades, em meio a luta, manteve vivas suas tradições.


Diante do exposto, rogamos que o nosso presidente se afaste da posição de neutralidade, mas que na verdade favorece os interesses das grandes potências, e, em respeito a autodeterminação dos povos estampada como preceito constitucional, reconheça, ainda em seu governo, a República Árabe Saharaui Democrática - RASD.


Este que vos fala não tem nenhum compromisso com o erro.


Se você constatar alguma imprecisão de datas, locais, fatos, nomes ou grafia, gentileza comunicar para imediata correção.


Contamos com você!


Marco Erlandi Orsi Sanches


Porto Alegre, Rio Grande do Sul/Brasil

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira*

O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira
*


Por José Carlos Moreira da Silva Filho
**



Esta é a versão integral do artigo de mesmo título publicado, em versão reduzida, em: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (coords.). Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Fórum, 2010.
Este artigo é fruto de projeto de pesquisa desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Direito à Memória e à Verdade e Justiça de Transição, com sede no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. O projeto de pesquisa, do qual resultou este artigo, obtém auxílio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e conta com bolsa de iniciação científica da Federação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - FAPERGS.
** Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná - UFPR; Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB; Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais – Mestrado e Doutorado - e Graduação em Direito); Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST.
1
A Justiça de Transição foi denominada da seguinte forma em documento produzido pelo Conselho de Segurança da ONU: "A noção de ‘justiça de transição’ discutida no presente relatório compreende o conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais e extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a destruição de um cargo ou a combinação de todos esses procedimentos" (NAÇÕES UNIDAS – Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretário Geral S/2004/616. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p.320-351, jan.-jun. 2009. p.325). Ver também: SOARES, Inês Virginia Prado. Justiça de Transição. In: Dicionário de Direitos Humanos. Brasília: ESMPU.


 
Texto completo:
http://idejust.files.wordpress.com/2010/07/o-julgamento-da-adpf-153-pelo-supremo-tribunal-federal-e-a-inacabada-transicao-democratica-brasileira.pdf


Parte:

(...)

A Indiferença ao Direito Internacional Humanitário

Eros Grau relacionou em seu voto um histórico das Anistias ocorridas no Brasil e também da jurisprudência do STF sobre o tema. Começa em 1900 e avança até a Anistia de 197970.

O claro intuito do juiz com tal recurso é dar a impressão de uma unicidade histórica tanto do perfil das Anistias ocorridas quanto da jurisprudência do Supremo sobre elas, enxergando na manutenção de uma mesma tendência política e jurisprudencial durante um século algum tipo de virtude.

É espantoso, porém, que o surgimento dos chamados crimes contra a humanidade no segundo pós-guerra não tenha trazido ao Brasil nenhuma influência na compreensão do conceito de Anistia, muito menos tenha sido referido ou mencionado em qualquer um dos votos dos Ministros e Ministras do STF.

Eis as perguntas incômodas que a referência a tais tipos de crimes traria: É possível a Anistia para crimes contra a humanidade? Caso afirmativo, em quais circunstâncias?

A figura dos crimes contra a humanidade surge pela primeira vez no Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945, que institui o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg e o torna competente para julgar crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

É muito importante a distinção entre estes dois tipos de crimes, pois será principalmente por este caminho que se poderá demonstrar a tibieza dos argumentos que descrevem a ditadura como uma guerra entre dois lados.

Sinalizar a existência de crimes de guerra pode nos levar a admitir a existência de uma guerra justa. Desde tempos imemoriais é possível identificar guerras que, deflagradas em nome de algum objetivo considerado justo e sagrado, eram justificadas e legitimadas, como foi o caso tanto das Cruzadas quanto das guerras coloniais que ocorreram no território americano, onde os indígenas eram massacrados "para o seu próprio bem"71.

Contudo, mesmo sem aceitar que uma guerra possa ser classificada como justa72, pode-se reconhecer a importância da existência de um direito da guerra.

Este direito, explicitado de modo pleno nas Convenções de Genebra, parte do pressuposto de que as mortes e violências causadas no cenário de uma batalha entre dois exércitos inimigos não se traduz em um crime de guerra.

Tem-se aqui a pressuposição de um equilíbrio de armas entre os contendores. Ademais, para que a guerra não descambe para o crime de guerra ou para o crime contra a paz ela deva ter objetivos estratégicos definidos, como a conquista de um território, por exemplo.
Na medida em que o cenário da guerra sai do campo de batalha e se desloca para o cativeiro dos prisioneiros ali feitos, o equilíbrio que antes autorizava a violência contra o inimigo agora já não mais existe.

Daí a necessidade de se estabelecer alguns limites que delineiam entre outras coisas a terminante vedação da tortura e o respeito aos direitos humanos mais básicos dos prisioneiros.

Se na guerra não criminosa pressupõe-se um forte equilíbrio entre as partes - uma reciprocidade - no crime contra a humanidade pressupõe-se um absoluto desequilíbrio – a ausência total de reciprocidade73, a negação da vítima como pessoa74, sua anulação completa seja pela tortura seja pela sua inclusão em um campo de concentração.

No campo não ocorre apenas a eliminação física dos internos, antes que isto ocorra eles são privados de sua identidade jurídica, perdendo a sua nacionalidade em muitos casos e ficando totalmente fora-da-lei e desprotegidos75. A existência ou não de culpa é totalmente irrelevante, visto que são inimigos objetivos, para os quais de nada valem os direitos humanos.

Após a morte jurídica vem a morte moral. A própria escolha moral é eliminada, em uma passividade absoluta que imobiliza qualquer ação. No caso das torturas sistemáticas ocorridas durante as ditaduras do Cone Sul, a escolha moral era eliminada na medida da inevitabilidade da delação para muitos dos prisioneiros que foram torturados.

Nestes casos, a pessoa trocava a interrupção da deterioração brutal de sua integridade física pela destruição da sua integridade moral.


O fato é que, como assinala Agamben, o campo passa a ser um novo padrão político que estrutura a civilização. Quando ele afirma que "tudo é campo", aponta para a possibilidade de que o campo possa se instalar em qualquer lugar e em relação a qualquer pessoa76.

Ou seja, até mesmo o fato de se possuir teoricamente alguns direitos não impede que a pessoa, uma vez inserida nesse espaço de exceção, seja tratada como se não tivesse "direito a ter direitos".

Os casos mais emblemáticos de aparição dessa "vida nua" são os apátridas, os refugiados, os internos dos campos de concentração e os prisioneiros dos porões ditatoriais.

Contudo, sua aparição se dissemina visivelmente,na contemporaneidade, para outros espaços, nos quais os direitos e os atributos de nacionalidade e cidadania já não valem nada e são impotentes para evitar a completa descartabilidade das pessoas que estão nesses lugares, como é o caso, por exemplo, das penitenciárias brasileiras e das próprias periferias, marcadas pela pobreza e exclusão étnica.

Nunca é demais dizer que a tortura no Brasil continua ocorrendo em profusão77, apenas com a mudança de foco do subversivo para o pobre78.

O crime contra a humanidade foi inicialmente definido, no Acordo de Londres de 194579 em seu artigo 6º, como (chancela?) a legalidade de um sistema ilegítimo e desumano, projetando-se para as escolas, a imprensa, a igreja, o setor produtivo, enfim, alastrando-se por toda a sociedade85.

Tais crimes são chamados de crimes contra a humanidade porque eles visam à completa eliminação de parcela inerente à diversidade humana, expulsando este grupo da comunidade política e atacando a base do que permite a própria existência da política: a pluralidade humana86.

É o Estado que tem se revelado o principal autor dos crimes contra a humanidade. E isto traz um agravante, pois é justamente o Estado quem deveria proteger os seus cidadãos da violação dos seus direitos fundamentais87.
85
Garapon é preciso sobre este ponto: "A violência inédita empregue pelo crime contra a humanidade consiste em utilizar os meios da guerra total contra uma parte da sua própria população, não só com o envolvimento militar – armamento maciço com tecnologia de ponta -, mas também mobilizando todos os recursos de uma sociedade, desde a administração, os transportes e a investigação científica até à imprensa e à justiça"


Após a breve caracterização feita sobre o que vem a ser o crime contra a humanidade, aparenta no mínimo imoral dizer como o fizeram alguns Ministros do STF que havia proporcionalidade entre os "lados". Que havia uma "disputa pelo poder".

Que é "a mesma situação histórica e, portanto, terá de receber um tratamento igual". Ou de que "há crimes de ambos os lados".

Devemos antes de tudo perguntar: é crime resistir, ainda que seja pelas armas, a um Estado ilegítimo, arbitrário, censor e que elimina do cenário jurídico as garantias mais básicas da pessoa humana?

Aqui o crime só deveria existir aos olhos da ditadura, pois para todos os que repudiam a prática dos crimes contra a humanidade tal ato merece outro nome: Direito de Resistência, fadado, todavia, dada a flagrante desproporção, a submergir na sua destruição, negação e perversão.

Os crimes contra a humanidade são, portanto, crimes internacionais, não dizem respeito apenas aos interesses internos da sociedade política na qual ocorreram.

Mesmo que o Estado não possua leis hábeis à apuração das responsabilidades de quem cometeu este tipo de delito, tal não o exime de sua responsabilidade internacional88.

A lupa pela qual os crimes contra a humanidade devem ser vistos não é a lupa do Direito nacional ou do Direito Penal, ambos voltados aos crimes comuns, mas sim a do Direito Internacional Humanitário. Tais crimes, pois, pela sua própria natureza, são imprescritíveis.

A sua imprescritibilidade decorre das normas, princípios e costumes do Direito Internacional, aos quais um Estado se vincula quando ratifica tratados e convenções, assumindo obrigações nesse plano.

Em nenhum dos documentos internacionais que tratam dos crimes contra a humanidade se faz qualquer referência a um limite de tempo para a apuração e responsabilização de tais crimes, exatamente pelo seu caráter e pela sua gravidade89.

A compreensão firmada na jurisprudência e nos documentos internacionais, seja da ONU ou da OEA, é de que a Convenção de 1968 apenas reconheceu algo que já existia como norma assentada no Direito Internacional pelo menos desde Nuremberg.

Foi este, por exemplo, o entendimento firmado pela Suprema Corte Argentina para declarar a inconstitucionalidade das Leis do Ponto Final e da Obediência Devida90.

Como se não bastasse isto, é conclusão difícil de ser rebatida a de que não se pode sequer cogitar de prescrição para os crimes de desaparecimento forçado, visto que configuram crimes permanentes, pois continuam a acontecer enquanto não é revelado o paradeiro do desaparecido.

Alguns Ministros do STF, porém, como Cezar Peluso, Celso de Mello e, principalmente, Marco Aurélio, entenderam que o debate em torno da interpretação da Lei de Anistia brasileira seria meramente acadêmico, pois, mesmo que se desse ganho de causa à autora, isto não teria efeito prático algum, já que todos os crimes estariam prescritos, inclusive os de desaparecimento forçado.

O Ministro Marco Aurélio, aliás, relembrou no voto da ADPF 153 o seu raciocínio na Extradição 974, relativa a Manuel Cordero Piacentini, agente da ditadura uruguaia que atuou intensamente na Operação Condor e foi o responsável por inúmeras mortes e desaparecimentos. Naquela ocasião, Marco Aurélio acabou sendo voto vencido quando negava totalmente a extradição de Manuel Cordero.

A sua justificativa era de que se os crimes de Cordero tivessem ocorrido no Brasil, eles estariam abrangidos pela Anistia, logo ao caso deveria ser aplicada uma espécie de "simetria".

Veja-se, pois, que para o Ministro, que semanas antes do julgamento da ADPF 153 concedeu entrevista em cadeia nacional na qual afirmou que a ditadura foi um "mal necessário", e que "foi melhor não esperar para ver" o que iria acontecer91, a Anistia brasileira, além de ser imune à noção de crimes contra a humanidade e ao influxo do Direito Internacional, possui uma impressionante extensão extraterritorial.

Voltando à pergunta formulada no início deste item, é admissível a Anistia para crimes contra a humanidade? Caso seja, em que circunstâncias?

Para responder a tais perguntas, é preciso partir de dois pressupostos básicos:

1) o repúdio à Anistia como exercício de esquecimento de crimes contra a humanidade;

2) a inexistência de uma fórmula abstrata na aplicação de mecanismos transicionais, estando esta a depender do contexto de cada sociedade em transição política.

Quanto ao primeiro pressuposto, Theodor Adorno demarcou incisivamente a sua imperiosidade:


O surgimento dos crimes contra a humanidade delineia uma ética negativa, isto é, não se sabe exatamente como se deve agir, mas sim como não se pode agir.

A referência de humanidade deixa de ser o virtual ser humano que reúne em si todos os atributos inerentes à dignidade da pessoa humana e passa a ser o concreto refugo humano, dos campos de concentração e dos espaços atingidos pelo alastramento do seu padrão político.

A memória torna-se a principal arma contra a repetição93. Isto não significa, contudo, que se possa afirmar que a Anistia deve ser varrida do mundo quando se defrontar com crimes contra a humanidade.

Na África do Sul estabeleceu-se na década de 90 um novo sentido para a Anistia: a Anistia sem esquecimento94.

No contexto da transição da África do Sul para um regime pós-apartheid, partiu-se do pressuposto de que impor julgamentos penais aos criminosos de lesa-humanidade que apoiaram a política delinqüente do apartheid poderia impulsionar uma verdadeira guerra civil, tal seria o nível de ressentimento da maior parte da população negra contra os seus antigos opressores.

A saída encontrada foi suspender a ordem jurídica normal, que desembocaria nos julgamentos, para colocar em ação um projeto de reconciliação que se estruturasse em dois grandes pilares: a verdade e a voz das vítimas95.

A Comissão se dirigia ao povo e por ele era permeada. Para que a verdade dos crimes do apartheid fosse revelada pelos seus agentes e para que se pudesse fortalecer o espírito de reconciliação, optou-se pela concessão da Anistia.

Simbolicamente, ocorre a aproximação do arrependimento que induz ao perdão96. Independente de ponderações críticas que possam ser feitas sobre a aceitação dessa saída restaurativa sul-africana, é indubitável que ela sinaliza para uma possibilidade de se permitir a Anistia para crimes de lesa-humanidade, com a condição de que a Anistia seja dissociada do exercício de esquecimento.

É no mínimo uma trapalhada histórica querer equiparar a Anistia sulafricana com a Anistia brasileira, mas é exatamente o que o Ministro Cezar Peluso faz em seu voto na ADPF 153:

Veja-se que na manifestação do Ministro vem a clara tentação de querer equiparar na moldura conceitual do "acordo", casos tão distintos como são o da África do Sul e o do Brasil.

Se a partir dos mecanismos restaurativos praticados no contexto sul-africano é possível cogitar-se da não realização de julgamentos penais para apurar crimes contra a humanidade, no caso brasileiro não estão presentes razões que sejam semelhantes para que se possa abrir mão de tais julgamentos.

Os agentes públicos que cometeram crimes contra a humanidade e seus mandantes no contexto da ditadura civil-militar brasileira não só não se
96
Paul Ricoeur em seu livro A memória, a história e o esquecimento, dedica páginas memoráveis para tratar do perdão difícil. Conclui o filósofo que o perdão não pode voltar-se ao ato em si, absolutamente abominável, mas sim àquele que cometeu o ato. "Finalmente, tudo se decide na possibilidade de separar o agente de sua ação. Esse desligamento marcaria a inscrição, no campo da disparidade horizontal entre a potência e o ato, da disparidade vertical entre o muito alto do perdão e o abismo da culpabilidade. O culpado, que se tornou capaz de recomeçar, tal seria a figura desse desligamento que comanda todos os outros. (...) separar o culpado de seu ato, ou em outras palavras, perdoar o culpado sem deixar de condenar sua ação, seria perdoar um sujeito outro que não aquele que cometeu o ato" (RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento
. Tradução de Alain François [et al. ]. Campinas: UNICAMP, 2007.p.500).


arrependeram publicamente dos seus atos, como até hoje impedem o acesso a documentos públicos que registram episódios não devidamente esclarecidos, insistindo no negacionismo (da política sistemática de torturas, por exemplo98) e projetando-o para parcelas desavisadas da sociedade brasileira99.

Que espécie de perdão pode ser cogitado neste contexto? Crê-se que apenas aquele perdão registrado pelo Ministro Ayres Britto em uma das passagens mais inspiradas do seu voto, ocorrida justamente quando leu trecho de um poema de sua autoria, intitulado A propósito de Hitler:

                                                           A humanidade não é o homem para se dar a virtude do perdão
                                                           A humanidade tem o dever de odiar os seus ofensores
                                                          Porque o perdão coletivo é falta de memória e de vergonha
                                                          Convite masoquístico à reincidência
100

Como se não bastasse a esdrúxula comparação e além de insistir na tese do "acordo", atacada no segundo item deste artigo, o Ministro Cezar Peluso tentou esquivar-se de maneira pouco convincente da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, segundo a qual a auto-Anistia para crimes contra a humanidade é inadmissível.
Aliás, nisto ele não ficou sozinho.

O Ministro Celso de Mello, apesar de ter sido o único magistrado que fez referência aos casos de Barrios Alto, do Peru, e de Aureliano Almonacid, do Chile101, exatamente os casos que consagraram a tese da vedação da auto-Anistia na jurisprudência da Corte Interamericana, afastou abruptamente a sua incidência do caso brasileiro, com o incompreensível argumento de que se a Anistia foi bilateral, logo ela não foi uma auto-Anistia.

Ora, ainda que a Anistia tenha favorecido os perseguidos políticos (não todos como se viu), o fato de ela ter se voltado, segundo interpretação até hoje chancelada pelo Poder Judiciário brasileiro, para os próprios agentes públicos e seus respectivos mandantes, em um processo de discussão e votação totalmente imposto por estes mesmos agentes e mandantes, em nada abranda a óbvia constatação de que se trata de uma auto-Anistia.

Repita-se, em 1979 o Brasil ainda era refém da ditadura civil-militar, e em 1977 o Congresso foi fechado tendo as regras da sua composição manipuladas com base no Ato Institucional Nº 5, para que nunca fosse possível a aprovação de um projeto de lei que contrariasse os interesses do governo ditatorial.

O resultado disto, como se viu, foi que o projeto enviado pelo governo Figueiredo ao Congresso Nacional foi aprovado sem que nenhuma das objeções feitas pela oposição fossem admitidas em qualquer etapa do processo.

Por fim, é preciso registrar igualmente a fragilidade do argumento de que se a ação fosse vencedora todos os Anistiados, inclusive os que foram perseguidos políticos, teriam suas Anistias anuladas. A Ministra Ellen Gracie chegou a mencionar que seria um "paradoxo" considerar a não recepção da Lei de Anistia pela Constituição de 1988, pois deste modo, ficariam excluídos todos os que já foram por ela beneficiados102.

O Ministro Cezar Peluso registrou que considerar o vício da fonte na produção da lei, ou seja, apontar a ilegitimidade do Congresso que a votou, nos levaria a considerar revogadas todas as leis produzidas no período, anulando, inclusive, todas as Anistias concedidas103.

Ora, é cristalino que a ação proposta pela OAB não tinha em mira toda a Lei de Anistia de 1979, mas sim a interpretação dada ao Art.1º, §1104.

O grande problema aqui apresentado não diz respeito simplesmente à ilegitimidade do Congresso Nacional à época da aprovação da Lei, o que está em jogo é a possibilidade de se convalidar um aspecto desta Lei, que é conflitante não só com os princípios da Constituição de 1988, mas com os princípios do Direito Humanitário Internacional e dos seus organismos, tratados e instituições, exatamente ali onde ela pode se mostrar complacente com o cometimento de crimes contra a humanidade, demarcando sem apelo a auto-Anistia entre nós.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Ex-ditador argentino é condenado a 50 anos por sequestro de bebês

Ex-ditador argentino é condenado a 50 anos por sequestro de bebês

 

Jorge Videla era acusado de plano executado durante governo militar.

Julgamento começou com denúncia de Avós da Praça de Maio.

Do G1, com agências internacionais  05/07/2012

Jorge Rafael Videla ouve seu veredicto em corte de Buenos Aires nesta quinta-feira (5) (Foto: Natacha Pisarenko/AP)

Jorge Rafael Videla ouve seu veredicto em corte de
Buenos Aires nesta quinta-feira (5)

(Foto: Natacha Pisarenko/AP)

A justiça argentina condenou nesta quinta-feira (5) o ex-ditador Jorge Rafael Videla a 50 anos de prisão pelo sequestro de bebês como parte de um plano sistemático executado durante o último governo militar na Argentina (1976-1983).

No mesmo julgamento, o ex-ditador Reynaldo Bignone foi sentenciado a 15 anos, anunciou o tribunal. "Condenado o ex-general Jorge Videla a 50 anos de reclusão (...) e o ex-general Reynaldo Bignone a 15 anos", leu a presidente do tribunal, María Roqueta.

Considerado um processo "emblemático", o julgamento começou por uma denúncia das Avós de Praça de Maio por "subtração, retenção, ocultação e substituição de identidade de menores de dez anos" e abrange cerca de 30 casos.

Centenas de familiares das vítimas, netos recuperados pelas Avós e ativistas dos direitos humanos comemoraram o veredicto com gritos e cantos diante de um telão instalado na entrada dos tribunais.

Pela aplicação do sistema de apropriação e mudança de identidade de menores foram lançadas outras sentenças a diferentes penas de prisão, entre 40 e 15 anos, contra outras autoridades da ditadura (1976-1983), entre elas um médico militar que atuava com obstetra nas maternidades clandestinas do regime.

Videla, de 86 anos, acaba de confessar em um livro que "de 7 a 8 mil pessoas devem ter morrido" na repressão a opositores e está cumprindo duas penas de prisão perpétua em cela comum por crimes contra a humanidade, que fizeram o Tribunal decidir nesta quinta-feira pela unificação das penas para manter a prisão perpétua.

Contra Bignone, de 84 anos, também pesa uma condenação à prisão perpétua e outra pena de 25 anos de detenção em outros dois julgamentos, por graves violações dos direitos humanos.

Os ex-ditadores Jorge Rafael Videla (esq) e Reynaldo Bignone ouvem sentença em tribunal argentino, nesta quinta (5) (Foto: Natacha Pisarenko / AP)

Os ex-ditadores Jorge Rafael Videla (esq) e Reynaldo Bignone ouvem sentença em tribunal argentino, nesta quinta (5) (Foto: Natacha Pisarenko / AP)

Apropriação de crianças

Neste julgamento, foram analisados 35 casos de apropriação de crianças, das quais 26 recuperaram sua identidade, "como um exemplo do plano sistemático que ocorreu em diferentes centros clandestinos de detenção", segundo as Avós da Praça de Maio, entidade humanitária criada em 1977 e candidata ao prêmio Nobel da Paz 2012.

"É impossível que se tenha estabelecido lugares especiais para grávidas dentro dos centros de detenção e toda uma logística sem uma decisão das cúpulas", argumentou o advogado do grupo.

As 'Avós' estimam em 500 o número de crianças roubadas ao nascer durante o cativeiro de suas mães, em sua maioria desaparecidas, das quais 105 recuperaram sua identidade.

Até o momento, vários julgamentos para casos pontuais de roubo de bebês foram realizados, com condenações de até 16 anos para os acusados.

Durante o atual processo foram analisados, entre outros, o caso de Aníbal Simón Méndez Gatti, filho dos uruguaios Sara Méndez e Mauricio Gatti, recuperado em 2002, e o de Macarena Gelman, filha de Marcelo Gelman e María Claudia Iruretagoyena e neta do poeta argentino Juan Gelman, roubada no Uruguai e que conheceu sua verdadeira identidade em 1999.

Enquanto isso, foi detida na terça-feira na Argentina Ana María Grimaldos, esposa do ex-chefe da Esma Jorge Vildoza e foragida desde 1988, acusada de se apropriar de Javier Penino Viñas, filho de desaparecidos, que recuperou sua identidade em 1999. O caso é parte deste julgamento.

Argentinos comemoram e se emocionam ao ouvir condenação em telão, diante de tribunal (Foto: Natacha Pisarenko / AP)

Familiares de vítimas que acompanharam julgamento comemoram ao ouvir condenação em telão, diante de tribunal (Foto: Natacha Pisarenko / AP)

Prisão perpétua

Em sua alegação final, Videla, que recebeu em 2010 sua segunda condenação à prisão perpétua por crimes contra a Humanidade, classificou como "terroristas" essas mulheres que deram à luz nas prisões da ditadura e que depois, em grande parte dos casos, eram jogadas vivas no mar de aviões militares em pleno voo.

"Todas as gestantes, a quem respeito como mães, eram militantes ativas da máquina do terrorismo. Usaram seus filhos como escudos humanos", disse o ex-ditador no tribunal.

De acordo com Videla, a existência de um plano sistemático para roubar crianças "é uma falácia (...), havia ordens estritas e escritas para devolver menores desamparados a seus familiares".

Em troca, Elliott Abrams, ex-subsecretário de Direitos Humanos do Departamento de Estado americano (1982-1985), revelou durante o julgamento que os Estados Unidos sabiam do que ocorria na Argentina.

"Acreditávamos que era um plano porque prendiam ou assassinavam muitas pessoas, e nos parecia que o governo militar tinha decidido que algumas crianças seriam entregues a outras famílias", declarou no consulado argentino em Washington.

"Fomos um espólio de guerra do regime", afirmou Leonardo Fossati, 35 anos, uma dos netos recuperados.

Durante a ditadura, cerca de 30.000 pessoas desapareceram, segundo organizações humanitárias.

Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/07/ex-ditador-argentino-e-condenado-a-50-anos-por-rapto-de-bebes.html

EXEMPLO ARGENTINO

Argentina volta a julgar último ditador


 General Reynaldo Bignone responde pelo sequestro e assassinato de 20 pessoas, sendo sete grávidas


23 de agosto de 2012 | 21h 40

Ariel Palacios, correspondente em Buenos Aires


Reynaldo Bignone (direita) é julgado na Argentina

BUENOS AIRES - O ex-ditador e general Reynaldo Bignone sentou-se nesta quinta-feira, 23, mais uma vez no banco dos réus para responder pelos crimes cometidos durante a ditadura militar (1976-83) em Campo de Maio, o maior quartel do Exército argentino. Bignone, o último ditador do regime, está sendo julgado no Tribunal Federal Número 1 de San Martín, na Grande Buenos Aires, com o general Santiago Omar Riveros e outros sete ex-oficiais.


 Os acusados responderão pelo sequestro e assassinato de 20 pessoas, entre elas sete mulheres grávidas.

Além disso, serão julgados pelo roubo de um bebê em 1976, Laura Catalina de Sanctis Ovando, hoje com 36 anos, cuja identidade foi descoberta em 2008.

Todos os réus prestavam serviço militar na época.

Ao longo dos próximos meses os juízes avaliarão a responsabilidade de Bignone, de 85 anos, no funcionamento de uma maternidade clandestina em Campo de Maio, um dos maiores centros de detenção e tortura da ditadura.

Estimativas indicam que nessas instalações militares, na zona noroeste da Grande Buenos Aires, o regime foi responsável pela morte de 5 mil civis.

Ao longo dos sete anos de ditadura, os militares teriam sequestrado e assassinado 30 mil pessoas.

Os bebês nascidos no cativeiro eram removidos de suas mães e entregues a famílias de militares e policiais estéreis.

As mães biológicas eram assassinadas.

A organização das Avós da Praça de Maio calcula que 500 bebês foram sequestrados pela ditadura.

Até o momento, 106 crianças, atualmente adultas, descobriram suas identidades originais.

Bignone governou a Argentina entre o fim da Guerra das Malvinas, em junho de 1982, e a volta da democracia, em dezembro de 1983.

Em 1985, ele foi julgado e condenado, mas em 1990 recebeu indulto do então presidente Carlos Menem (1989-99).

Em 2004, com a revogação das Leis de Perdão no Parlamento, Bignone tornou-se alvo de novos processos nos tribunais.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,argentina-volta-a-julgar-ultimo-ditador,920843,0.htm

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A doutrina da guèrre révolutionnaire: novas hipóteses para a judicialização da repressão no regime de 1964

A doutrina da guèrre révolutionnaire: novas hipóteses para a judicialização da repressão no regime de 1964

GT 14 – Forças Armadas, Estado e Sociedade


Por Erika Kubik da Costa Pinto

Outubro de 2012

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As derrotas na Indochina e a eclosão da guerra da Argélia fortaleceram no Exército francês a ideia de que a principal causa da derrota fora não ter uma doutrina militar preparada para enfrentar um novo tipo de guerra, na qual se confundiam elementos militares e não militares e combinavam de forma particular política, ideologia e operações bélicas. Esse novo tipo de guerra não poderia ser compreendido fora de seu espectro ideológico.

A guerra revolucionária surgiria como um desdobramento típico da Guerra Fria, em que atuaria em círculos cada vez maiores que se afastariam das fronteiras dos países socialistas.

Para o General Trinquier, a guerra revolucionária abandona a clássica visão de dois exércitos inimigos sobre um campo de batalha, no momento em que o inimigo explora tensões políticas, ideológicas, sociais e econômicas, aproximando-se da população com o objetivo de subverter o regime corrente.

Assim, as guerras revolucionárias, sejam elas localizadas ou de um espectro mais amplo, deixam de ter como objetivo único a defesa de fronteiras e território e incorporam a ideia de imposição de uma visão ideológica de mundo, de maneira que a guerra total é incorporada como justificativa para os conflitos que surgem fora do eixo das grandes potências.

Raphaelle Branche (2001: 108) afirma que os militares franceses dirigidos pelo general Salan em 1956, entenderam que para a guerra contrarevolucionária, as funções militares sofreriam uma alteração no sentido mesmo das mudanças do perfil da guerra.

Martins Filho (2008:41) afirma que a derrota da Indochina foi fundamental para as alterações teóricas que se seguiram na construção desta nova teoria de guerra, no sentido de mostrar que a doutrina da guerra clássica não estava preparada para este novo contexto de múltiplos aspectos.

Nesse quadro, esta nova doutrina oferecia um diagnóstico e um remédio para aquilo que um influente grupo de militares franceses via como a doença principal do mundo moderno, a incapacidade do Ocidente em enfrentar o desafio da subversão comunista ateia.

O mesmo autor (2009: 182) enfatiza que a doutrina da guerra revolucionária francesa criou uma visão particular das relações entre guerra e política, pois, na medida mesma em que o controle das informações seria o elemento decisivo da guerra revolucionária, combater essa forma de guerra exigiria a unificação do comando político e do comando militar.

Ao colocar a guerra revolucionária como uma nova tipificação de guerra, surgida no bojo da Guerra Fria, o general Trinquier (1961) mostra que a interdependência atual dos países leva a que, mesmo um conflito localizado, tenha repercussões mundiais. Ou seja, a guerra revolucionária ou subversiva surge localizadamente, refletindo uma série de oposições de natureza macro política.

Para o autor, na condução de uma guerra baseada em duas situações específicas, o terrorismo, que aconteceria principalmente nas cidades e a guerrilha, no interior, conhecer o inimigo e sua estratégia seria fundamental.

Daí decorreria a necessidade de se obter informações para o desmantelamento da oposição a qualquer custo. Para Trinquier (1961), a intimidação seria o meio mais eficaz de ação política, tanto na esfera interna quanto na esfera internacional. Uma guerra vitoriosa extermina apenas uma parte ínfima do adversário, no entanto, a intimidação pelas ações desmoraliza e submete a vontade de todo o inimigo.

A doutrina da guerra revolucionária francesa subverte a ordem estabelecida pela guerra clássica e coloca o recurso às armas no final do conflito e não no seu começo.

Trinquier se afasta da teorização da guerra clássica defendendo que a guerra revolucionária se desenvolve em moldes hobbesianos - o soldado seria o lobo do próprio soldado.

Nestes termos, não haveria espaço para normas e convenções internacionais baseadas no direito de guerra – aqui entendida prioritariamente a Convenção de Genebra. A guerra revolucionária justificaria, por assim dizer, o uso sistemático da tortura, vez que seria a representação máxima da guerra sem limites jurídicos, fora de qualquer fiscalização por parte do direito internacional.

Ao retirar da competência internacional o controle sobre a guerra revolucionária, Trinquier (1961) traça o perfil do inimigo interno como aquele que recorre a todos os procedimentos de combate que um exército regular deveria abster-se de utilizar no caso de um país democrático.

Tanto as ações terroristas urbanas, quanto a guerrilha rural se complementam nos objetivos da oposição. A contra-ação deveria, portanto, objetivar a exterminação de ambas. Nesse sentido, dois aspectos passam a ser fundamentais: a manipulação da população por meio de mecanismos particulares de ação psicológica sobre as massas e a necessidade de acesso rápido às informações logo que o inimigo é preso.

Branche (2001) pesquisou com fôlego a tortura e o desenvolvimento da guerra revolucionária na Argélia. Ela mostra que, a partir de 1956, o exército francês inicia uma nova era de ação contra-revolucionária. Na medida mesma que a rebelião se alastra pelas cidades, a resposta imediata se dá através da ação psicológica sobre os cidadãos de maneira massiva 2001: 105).

Esta ação psicológica surge a partir de uma  mudança no eixo teórico da guerra, quando um novo ingrediente é posto em destaque, as oposições ideológicas.

O general Trinquier (1961) ao sistematizar uma teoria de réplica à guerra subversiva, parte do pressuposto de que um terrorista ou um guerrilheiro não pode ser considerado um soldado como os demais.

Ele sustenta que, uma vez capturado, este não deve ser tratado como um prisioneiro de guerra sujeito à Convenção de Genebra, nem sua responsabilização pelos atos praticados será pessoal, individual, mas pelos atos de destruição e insubmissão de forma ampla.

Existe neste caso, uma inversão da responsabilização penal, que passa do indivíduo para a responsabilização do todo como forma de intimidar toda a oposição.

O general justifica a tortura como o mecanismo mais rápido e eficaz de destruir a infra-estrutura político-ideológica da oposição, a criação de um ordenamento penal excepcional e processo e julgamento por cortes militares de exceção.

A necessidade de informações rápidas para destruir as células só poderia ser obtida pela tortura, que “enverga o corpo e submete o psicológico”.

Ela se transformou durante a guerra da Argélia em arma essencial do poder com duplo objetivo, como mostra Lauret e Lassierra (1974: 328): “a tortura não é apenas para conseguir informações, ela é uma arma psicológica”.

Além disso, a flexibilidade na definição do inimigo permitiu que ela fosse empregada contra uma gama importante de setores de oposição não vinculados à guerra subversiva e, esta situação só se agravou com a estratégia militar das incursões ao acaso na busca de células e terroristas.

(...)

Com a possibilidade de prisões sem autorização judicial, o preso ficava numa espécie de vácuo legislativo, sem existência jurídica. A complexidade na construção da legislação repressiva produziu um espaço onde tais ilegalidades puderam ser cometidas.

O manual de interrogatórios elaborado e divulgado sigilosamente em 1971 no Centro de
Informações do Exército, junto com o comportamento dos interrogadores, definia os limites entre os métodos de tortura como estratégia repressiva ilegal e o nível judicial de repressão:


“(...) o interrogatório é uma arte e não uma ciência (...) o interrogatório é o confronto de personalidades (...) o fator que decide o resultado de um interrogatório é a habilidade com que o interrogador domina o indivíduo, estabelecendo tal advertência para que ele se torne o cooperador submisso (...) uma agência de contra-informação não é um tribunal da justiça, ela existe para obter informações sobre as possibilidades, métodos e intenções de grupos hostis ou subversos, a fim de proteger o Estado contra seus ataques, disso se conclui que o objetivo de um interrogatório de subversivos não é fornecer dados para a Justiça criminal, é processá-los; seu objetivo real é obter o máximo possível de informações. Para conseguir isso será necessário frequentemente, recorrer a métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência. É assaz importante que isto seja bem entendido por todos aqueles que lidam com o problema, para que o interrogador não venha a ser inquietado para observar as regras escritas do Direito (...) porém, se o prisioneiro tiver de ser apresentado num tribunal para julgamento, tem de ser tratado de forma a não apresentar evidência de ter sofrido coação em suas confissões”.

Apesar das denúncias serem aceitas pela Justiça Militar com base em interrogatórios retirados sob tortura, isso não significaria que a sua institucionalização se deu para acobertar a tortura e manter uma espécie de “fachada democrática”.

A legitimidade foi importante, mas nosso argumento é que, ao compor o
ethos militar, a doutrina de segurança nacional com base na guerre révolutionnaire criou consenso quanto ao uso legítimo da tortura como método de obtenção de informações que se estendeu às demais instâncias repressivas do regime, incluindo a Justiça Militar em sua atuação como corte de exceção no julgamento dos crimes contra a segurança nacional.



A Justiça Militar atuando como justiça política trazia para dentro do tribunal a divisão entre amigo/inimigo.

O julgador não estaria mais numa posição equidistante entre as partes, mas representaria junto com os órgãos de acusação a vontade do Estado.

Nesse sentido, o consenso na tortura como elemento estratégico demonstraria a proximidade da instância judicial com as demais instâncias repressivas do regime - a polícia e, a partir da unificação do comando das ações repressivas em 1969, as Forças Armadas.

Fonte: http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=7996&Itemid=76

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Israel-Palestine – what is the U.S. national interest?


Israel-Palestine – what is the U.S. national interest?



By Ralph Nader

Israeli elections are coming up in January so it is Palestinian hunting season again. Israeli cynics call it a time “for mowing the grass.”

Out comes the well-worn playbook by Israel’s militaristic government that has worked to silence Israeli politicians and citizens who want a two-state solution. This is an opportunity to use and test advanced weaponry from the U.S., compliments of U.S. taxpayers, and squelch ongoing peace efforts, small and large, by Palestinians, Israelis and international peace advocates.

The playbook’s first chapter is provocation to upset a tense but workable truce with Hamas, the elected government of Gaza. Hamas was encouraged at its creation years ago by both Israeli and U.S. backers to counter the secular Palestine Liberation Organization (PLO). Bit of a blowback there.

Israeli government leaders are expert provocateurs when they wish to seize land, water or prisoners and upset any movement toward a peace that would create a viable Palestinian state back to the 1967 borders, which includes East Jerusalem. When Israel came into being in 1948, it soon broke a UN truce and doubled its territory by taking the large area known as the Negev desert, whose refugees ended up in the Gaza Strip. Now 1.6 million encircled and impoverished humans, blockaded and under siege by Israel, try to survive in an open-air prison little more than twice the size of the District of Columbia.

Israel’s strategy of breaking cease-fires and truces over the years has been documented by Princeton University history professor emeritus, Arno J. Mayer, in his scholarly book Plowshares into Swords: From Zionism to Israel (Verso, 2008).

In late 2008, Israel broke a months-long truce with Hamas with an attack that took half a dozen lives. Modern Israeli missiles and crude Hamas rockets started flying to and fro. Then Israel invaded the Gaza strip with soldiers to add to its previous incursions –  24/7 electronic and satellite surveillance, omnipresent spies, flyovers, and data mining (down to specific details on each extended family and neighborhood).

With their avowed pinpoint bombing, the Israelis destroyed homes, schools, clinics, police stations, clusters of people at bus stops, farms, UN facilities and even hit the American International School – all with the blessing of President-elect Barack Obama.

Observers marvel at the precise knowledge by Israel of who was in what car traveling where in Gaza, before being vaporized. Yet somehow, the second-most modern military in the world could not detect and stop those garages assembling the rockets or the sites firing the crude missiles, which were the rationale for the Israeli invasion.

When the Gaza invasion-massacre ended, there were more than 1400 Palestinian fatalities, including around 300 children, and many thousands of injuries, a population surrounded by destruction and deprived by this illegal blockade-siege of medicines, food, water, electricity and the other necessities of life.

One large extended family in several adjoining homes was ordered by Israeli soldiers to congregate in the largest of the homes. Then the Israelis blew it up. This Samouni family lost about 30 of its members, or more than double the entire fatality toll in Israel, including those soldiers lost from friendly fire.

The current hostilities started in two stages. The first was a back-and-forth that saw an emerging truce broken decisively on November 14 when Israel pridefully blew up a car containing Hamas military chief, Ahmad al-Jabari who actually was leading the negotiations via Egypt with Israel for a longer-range truce.

Back to Israel’s playbook, chapter two can be called the instant, mandatory resolutions by the puppet show in Congress and the automatic one-sided mantra by the White House. “Israel has a right to defend itself,” said President Obama, from the occupied, besieged, defenseless Palestinians, whose lands, water, homes, businesses and freedom of movement are being taken relentlessly by the raiding Israeli government that is not content with possessing 78 percent of traditional Palestine.

More than 1500 Israeli reserve combat officers and soldiers signed a declaration refusing, in their words, “to fight beyond the 1967 borders in order to dominate, expel, starve and humiliate an entire people.” The founder of Israel, David ben Gurion, candidly declared it “their (Palestine’s) land and we took it.”
So Palestinians do not have a right to try to defend themselves against their cruel, powerful occupiers.

Israel is violating several UN resolutions along with international law, according to many experts including Richard Falk, the United Nations special rapporteur on human rights in the Palestinian territories. But the U.S. gives Israel its unwavering UN veto cover.

Finally, chapter three of the playbook is to make sure that the Israeli government advocates dominate the U.S. media – the talk shows, the news slants, and the opinion columnists. This is becoming less easy in an internet age. Which might explain that, along with homes, water wells, rescue teams, an ambulance, and other civilian installations, the Israeli air force already has bombed the office building housing Palestinian television studios and hosting media from the western world, including Fox TV. That is one indelicate way to tell these western journalists to get out of Gaza so that the truth about the immense civilian suffering and war crimes can no longer be told by them.

Still, the heroic Israeli progressives and peace advocates would not be silenced, in spite of some Hamas rockets nearing Tel Aviv. A few hundred of them demonstrated in this city, charging the Netanyahu government with provoking the fighting in Gaza to divert attention from conditions of social and economic injustices and civil liberty suppression in their country.

The Israeli-Palestinian conflict can be resolved peacefully, without violence. During quieter times, more than half the Israelis supported a two-state solution. A few years ago, 61 percent of Israelis, polled by a prominent university there, favored negotiations with Hamas. A majority of Jewish-Americans, though unorganized, favor a two-state solution.

In 2002, the Arab League unanimously (22 countries) presented with great fanfare an across-the-board peace treaty with the stipulation that Israel would adhere to UN Resolutions and allow a viable Palestinian state. Again and again, sometimes in full-page ads in U.S. newspapers, this offer was repeated only to receive scoffing and abrupt dismissal by the Israeli government. So, predictably, Washington did nothing.

So what is the alternative? A one-state solution with both Palestinians and Israelis having equal rights? Noura Erakat, who teaches at Georgetown University, framed the dilemma back in August whenshe quoted former prime minister and current Defense Minister Ehud Barak, saying, after leaving his former post, “If, and as long as between the Jordan (River) and the (Mediterranean) Sea there is only one political entity, named Israel, it will end up being either non-Jewish or nondemocratic…. If the Palestinians vote in elections it is a binational state, and if they don’t vote it is an apartheid state.” His rival, former Prime Minister Ehud Olmert said the same thing.

Awareness of this pathway is leading some extremist Israeli politicians who call Palestinians “vermin” and “rats” to think about the day when they can, with suitable provocations, drive the Palestinians into the desert.

Fonte: http://nader.org/

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Conversas com Mr. DOPS: José Paulo Bonchristiano

Conversas com Mr. DOPS: José Paulo Bonchristiano 



Nossa repórter passou mais de 15 horas entrevistando um ex-delegado da ditadura. Enfrentou resistência, informações desencontradas e até um suposto pacto de silêncio – um embate que antecipa os desafios da Comissão da Verdade.

Por Marina Amaral

www.apublica.org

Aos 80 anos, José Paulo Bonchristiano conserva o porte imponente dos tempos em que era o “doutor Paulo”, delegado do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo, “o melhor departamento de polícia da América Latina”, não se cansa de repetir.“O DOPS era um órgão de inteligência policial, fazíamos o levantamento de todo e qualquer cidadão que tivesse alguma coisa contra o governo, chegamos a ter fichas de 200 mil pessoas durante a revolução”, diz, referindo-se ao golpe militar de 1964, que deu origem aos 20 anos de ditadura no Brasil.

Embora esteja aposentado há 27 anos, não há nada de senil em sua atitude ou aparência. Os olhos astutos de policial ainda dispensam os óculos para perscrutar o rosto do interlocutor, endurecendo quando o delegado acha que é hora de encerrar o assunto.

Bonchristiano gosta de dar entrevistas, mas não de responder a perguntas que lancem luz sobre os crimes cometidos pelo aparelho policial-militar da ditadura do qual participou entre 1964 e 1983: prisões ilegais, sequestros, torturas, lesões corporais, estupros e homicídios que, segundo estimativas da Procuradoria da República, vitimaram cerca de 30 mil cidadãos. Destes, 376 foram mortos, incluindo mais de 200 que continuam até hoje desaparecidos.

Os arquivos do DOPS se tornaram públicos em 1992, mas muitos documentos foram retirados pelos policiais quando estavam sob a guarda do então diretor da Polícia Federal e ex-diretor geral do DOPS, Romeu Tuma.

Entre os remanescentes estão os laudos periciais falsos, produzidos no próprio DOPS, que transformavam homicídios cometidos pelos agentes do Estado em suicídios, atropelamentos, fugas. No caso dos desaparecidos, os corpos eram enterrados sob nomes falsos em valas de indigentes em cemitérios de periferia.


Globo, Folha, Bradesco – e Niles Bond

Bonchristiano é um dos poucos delegados ainda vivos que participaram desse período, mas ele evita falar sobre os crimes. Prefere soltar o vozeirão para contar casos do tempo em que os generais e empresários o tratavam pelo nome.

Roberto Marinho, da Globo, diz, “passava no DOPS para conversar com a gente quando estava em São Paulo”, e ele podia telefonar a Octávio Frias, da Folha de S. Paulo “para pedir o que o DOPS precisasse”.

Quando participou da montagem da Polícia Federal em São Paulo, conta, o fundador do Bradesco mobiliou a sede, em Higienópolis: “Nós do DOPS falamos com o Amador Aguiar ele mandou por tudo dentro da rua Piauí, até máquina de escrever”.

O “doutor Paulo” sorri enlevado ao lembrar dos momentos passados com o marechal Costa e Silva (o presidente que assinou o AI-5 em dezembro de 1968, suspendendo as garantias constitucionais da população). “O Costa e Silva, quando vinha a São Paulo, dizia: ‘Eu quero o doutor Paulo Bonchristiano’”, e imita a voz do marechal – ele adora representar os casos que conta.

“Eu fazia a escolta dele e ele me chamava para tomar um suco de laranja ou comer um sanduíche misto na padaria Miami, na rua Tutóia, vizinha ao quartel do II Exército. Todo mundo querendo saber onde estava o presidente da República, e eu ali”, delicia-se.

Gaba-se de ter sido enviado para “cursos de treinamento em Langley” nos Estados Unidos, pelo cônsul geral em São Paulo, Niles Bond, que admirava a “eficiência” da polícia política paulista. E o chamava de “Mr. Dops”.

Orgulha-se também de outro apelido – “Paulão, Cacete e Bala” – que diz ter saído da boca dos “tiras” quando “caçava bandidos” na RUDI (Rotas Unificadas da Delegacia de Investigação), no início da carreira, com um “tira valente” chamado Sérgio Fleury. Anos depois, os dois se reencontrariam na Rádio Patrulha, de onde saiu a turma do Esquadrão da Morte, levada para o DOPS em 1969, quando Fleury entrou no órgão.

“Polícia é polícia, bandido é bandido”, diz Bonchristiano. “Para vocês de fora é diferente, mas para nós, acabar com marginal é uma coisa positiva. O meu colega Fleury merecia um busto em praça pública”, afirma, sem corar.

O delegado Sérgio Fleury e sua turma de investigadores se celebrizaram por caçar, torturar e matar presos políticos no DOPS, enquanto continuavam a exterminar suspeitos de crimes comuns no Esquadrão da Morte.


Conversas gravadas

No decorrer de nove tardes passadas, entre junho de 2011 e janeiro deste ano, em seu apartamento no Brooklin, no 13º andar de um prédio de classe média alta, aprendi a escutar com paciência os “causos” que “doutor Paulo” narra com humor feroz, até extrair informações relevantes. Repetidas vezes eu as confrontava com livros e documentos e voltava a inquiri-lo; a proposta era que ele se responsabilizasse pelo que dizia.

De certo modo, meu embate com o “doutor Paulo” antecipava as dificuldades que serão enfrentadas pela Comissão da Verdade, a ser instalada em abril para apurar fatos e responsáveis – sem punição penal prevista – pelas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1946 e 1988, abrangendo o período da ditadura militar.

O objetivo da comissão é devolver aos cidadãos brasileiros um passado que ainda não se encerrou, como provam os desaparecidos, e impedir que funcionários públicos sigam mantendo segredo sobre atos praticados a mando do Estado.

A fragilidade da lei em pontos cruciais, porém, provoca ceticismo nas organizações de direitos humanos, em especial ao permitir o sigilo de depoimentos – ferindo o direito à transparência pública –, e ao não prever punições aos responsáveis pelos crimes, nem mesmo medidas coercitivas para os que se recusarem a depor.

“Não vou depor. Acho bobagem”, diz Bonchristiano. “Nunca pratiquei irregularidades, mas não sou dedo duro e não vejo utilidade nessa comissão”, justifica o funcionário público, aposentado aos 53 anos, e que recebe hoje 11 mil reais por mês de pensão.

Minhas conversas com Mr. DOPS renderam 15 horas de gravação que revelam a mentalidade e as conexões políticas dos policiais que atuaram na repressão do governo militar. E provam que os detentores das informações estão por aí – embora continuem ocultando as circunstâncias exatas em que os crimes foram cometidos e os mandantes de cada um deles.


Torturadores e repressores

O nome de Bonchristiano – que significa “bom cristão” e veio de Salerno, Itália – não consta das principais listas de torturadores compiladas por organizações de direitos humanos.

O Projeto Brasil Nunca Mais, um extenso levantamento realizado clandestinamente entre 1979 e 1985 com base nos IPMs (inquéritos policiais militares), é até hoje a principal referência, embora muitas vezes liste apenas os “nomes de guerra” dos torturadores, já que os reais eram desconhecidos das vítimas.

No tomo II, volume 3, “Os funcionários”, Paulo Bonchristiano é citado oito vezes em operações de repressão. Mas seu nome também não consta da chamada Lista de Prestes, de 1978, liberada recentemente pela viúva do líder comunista, que traz vários nomes completos e os cargos de 233 torturadores denunciados por presos políticos – entre eles 58 policiais do DOPS de São Paulo, 21 deles delegados.

As lacunas dessa história, porém, não permitem descartar a revelação de novos nomes. Entre 1968 e 1976 – o período mais duro da ditadura –, as torturas faziam parte do cotidiano de todos os policiais e militares envolvidos na repressão.

O DOPS era “manejado pelos militares como um órgão federal”, como observa o jornalista Percival de Souza no livro “Autópsia do Medo”, do qual o Paulo Bonchristiano participa como fonte e personagem, qualificado como “um dos delegados mais conhecidos do DOPS”.

Nas entrevistas à Pública, o ex-delegado resistiu duas tardes inteiras antes de admitir que se torturava e matava no “melhor departamento de polícia da América Latina” – o que hoje qualquer cidadão pode constatar através dos depoimentos reunidos no “Memorial da Resistência”, museu que desde 2002 ocupa as antigas instalações do DOPS, no centro de São Paulo.

Nem mesmo o fato de Sérgio Fleury ter se celebrizado como torturador impediu Bonchristiano de tentar isentar o órgão: “O Fleury era do DOPS e não era do DOPS, era o homem de ligação do DOPS com os militares, era delegado das Forças Armadas, do Alto Comando.

Não obedecia a ninguém, interrogava presos no DOPS, no DOI-CODI, em delegacias, sítios, no país inteiro. Todo o segundo andar do DOPS era dele, tinha que telefonar antes: ‘Fleury eu vou descer pra falar com você’. Se não, a gente não entrava. Ele tinha uma porta lá, todo misterioso”.

Bonchristiano ainda se lembra, e muito bem, das antigas desavenças com o ex-colega.

“O Fleury estava em todas, se metia em tudo, perdi muitos ‘tiras’ para ele porque lá eles ganhavam mais, tinha um ‘por fora’”, contou na segunda entrevista. “Uma vez prendi um cara em um aparelho no Tremembé, e quando estava chegando no DOPS, o Fleury pediu o preso emprestado, não lembro o nome dele.

Depois de dois dias sem notícias do preso, fui perguntar para o Fleury, e ele me pediu desculpas, tinha matado o cara que eu nem ouvi”, relata, como se fosse um contratempo na repartição. “Chegou uma hora que só ele que dominava. Só se falava dele”.

“Graças a Deus só se fala no Fleury”, reagiu dona Vera, a elegante senhora com quem o ex-delegado é casado há 53 anos, que entrava na sala trazendo refrigerantes. E emendou: “Zé Paulo, essa entrevista já não está durando demais?”, frase que ela repetiria muitas vezes depois.

Foi na terceira entrevista – quando já acumulávamos seis horas de gravação – que o “doutor Paulo”, sem dona Vera na sala, finalmente confirmou que “sabia de tudo” o que acontecia no DOPS. E se “justificou”: 

“Eu não podia fazer nada, isso era com o pessoal de lá de cima. Eu era delegado de segunda classe, respondia apenas ao diretor do DOPS, o resto era com eles”.

Bonchristiano tornou-se delegado de 2ª classe em 1969 e foi promovido “por merecimento” a delegado de 1ª classe em 1971.

Naquele mesmo dia, admitiu que frequentava os outros centros de tortura montados em São Paulo a partir de 1969, como a OBAN (Operação Bandeirante)  e o DOI-CODI, comandados pelo Exército e compostos de policiais civis e militares instruídos a torturar. Só no período de 1970 a 1974, a Arquidiocese de São Paulo reuniu 502 denúncias de tortura no DOI-CODI paulista, apelidado jocosamente pelos policiais de “Casa da Vovó”.

Bonchristiano disse então que “alguns da diretoria do DOPS” participaram da montagem da OBAN – “os militares não entendiam nada de polícia, depois aprenderam” – e que cederam três delegados no início das operações, todos incluídos entre os torturadores na Lista de Prestes:

Otávio Medeiros, ligado ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e à TFP (Tradição, Família e Propriedade), assassinado em 1973 por militantes da resistência armada; Renato d’Andrea, colega de Bonchristiano na Faculdade de Direito da PUC; e Raul Nogueira de Lima, o Raul Careca, ex-investigador subordinado a Bonchristiano e ligado ao CCC, que se tornaria delegado depois.

Levaram também os métodos da polícia, incluindo o pau-de-arara – na origem um cabo de vassoura apoiado em duas mesas, onde os policiais deixavam o preso pendurado por pulsos e tornozelos até que a dor insuportável os fizesse “confessar”.

“O pau-de-arara não é, assim, uma tortura, vai tensionando os músculos, se o cara falar logo não fica nem marca, mas se o cara for macho e segurar…”, explicou-me ele certa vez. Diante de minha expressão escandalizada, concedeu: “choques, sim, dependendo”. E completou: “Naquela época foi diferente, o governo estava tentando melhorar o país. Aí nós tivemos que fazer essa luta. Nunca considerei os comunistas bandidos, considerava ideologicamente inimigos. Tanto que eu sempre falei, não poderia haver mortes”.

Bonchristiano disse que frequentava a OBAN e o DOI-CODI para “buscar presos, não para levar”, buscando distanciar-se das mal afamadas equipes de captura da OBAN, que realizavam prisões ilegais. Alguns eram soltos sem que sua passagem nos órgãos policiais fosse sequer registrada; outros eram enviados para os cárceres do DOPS, onde assinavam as “confissões” e tinham a “prisão preventiva” decretada.

“Maçã Dourada”, os paramilitares e o DOPS

Em seus primeiros anos no DOPS, Bonchristiano se especializou em infiltrações em movimentos sindicais, mas a partir de 1968 os estudantes se tornaram prioridade. “Quem faz revolução é estudante, operário faz revolução na Rússia”, costumava dizer.

Uma das operações das quais mais se orgulha, que o levou às páginas de revistas e jornais, foi o desmantelamento do Congresso da União Nacional dos Estudantes em Ibiúna, em 12 de outubro de 1968, comandado por ele.

“Prendi 1263 estudantes sem disparar um tiro”, diz – embora os policiais do DOPS e da Força Pública de Sorocaba tenham comprovadamente anunciado sua chegada com rajadas de metralhadora para o ar. “Coloquei a garotada em 100 ônibus cedidos pela (viação) Cometa e levei todo mundo para o DOPS. Separei os líderes e liberei o resto para ir para casa. Não tínhamos vontade de matá-los, eram estudantes”, ironiza.

Entre os 11 líderes que Bonchristiano mandou para o Forte de Itaipu, em Santos, estão os ex-ministros Franklin Martins e José Dirceu, e o líder estudantil Luiz Travassos, já falecido.

“Eu sabia tudo o que o Dirceu fazia porque ele era metido a galã e eu coloquei uma agente nossa para seduzi-lo”, gaba-se o delegado. “Ela era muito bonita, a Maçã Dourada, e me contava todos os passos dele”, diz o delegado. A “estudante” Heloísa Helena Magalhães, uma das 40 moças contratadas pelo DOPS para esse tipo de serviço, segundo ele, chegou a ser secretária de Dirceu na UNE (na verdade, José Dirceu foi diretor da UEE).

Dias antes, havia acontecido o famoso embate entre estudantes de direita reunidos no Mackenzie e estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antonia, base de resistência contra a ditadura.

Pelo lado da direita, os conflitos foram publicamente liderados por João Marcos Flaquer, fundador do CCC, organização paramilitar idealizada por Luís Antonio Gama e Silva, o jurista que redigiu o AI-5 após se afastar da reitoria da USP para assumir o Ministério da Justiça de Costa e Silva.

Flaquer não era do Mackenzie – estava no último ano de Direito na USP – e dividia o comando dos combates com Raul Nogueira de Lima, o Raul Careca, “tira” do DOPS, subordinado a Bonchristiano.

Oficialmente, a polícia só entrou no campus no segundo dia de conflitos, depois que um tiro, atribuído a um membro do CCC, Ricardo Osni, atingiu um estudante secundarista. Mas, segundo Bonchristiano, havia outras forças por trás dos conflitos:

“Foi o João Marcos que fundou o CCC e salvou os estudantes de passarem todos para o comunismo, por isso os americanos também gostavam dele”, diz o ex-delegado. “Ele tinha uma capacidade fabulosa, era forte demais, um cara fora de série, muito meu amigo. Eu o conhecia desde o segundo ano da faculdade, ele queria ser delegado mas a família dele era muito rica e não o queria metido com polícia, então ele vinha para o DOPS comigo.

Ele dirigia toda essa parte de estudantes, infiltrava gente entre os esquerdistas. Se tinha alguma coisa que interessava ao DOPS, ele fazia. Mas só com minha anuência”, gaba-se o ex-delegado, que diz participado do planejamento do conflito.

O CCC começou com cerca de 400 membros e chegou a reunir 5 mil homens – boa parte deles militares e policiais. Andavam armados, espancavam estudantes e artistas que se opunham à ditadura e seus atentados mataram pelo menos duas pessoas.

João Marcos Flaquer, Ricardo Osni, João Parisi Filho e José Parisi, “estudantes” do CCC, eram colaboradores do DOI-CODI e constam da lista de torturadores do Brasil Nunca Mais.

Os dois primeiros, bem como o mentor Gama e Silva, também participavam de encontros que reuniam policiais da CIA e do DOPS. “A especialidade da CIA era fomentar organizações paramilitares como o CCC. Acho bem possível que eles recebessem, além de apoio, dinheiro”, diz a socióloga Martha Huggins, da Tulane University, New Orleans, pesquisadora de programas de treinamento de policiais estrangeiros pela CIA.


Afinidades eletivas: o DOPS e a CIA

Bacharel de Direito pela PUC-SP, filho de uma farmacêutica e um bancário, José Paulo Bonchristiano não entrou na polícia política por acaso. Ele e a turma de amigos da faculdade – seis deles futuros delegados do DOPS – eram anticomunistas viscerais e católicos conservadores, e representavam a direita no centro acadêmico 22 de agosto.

Esse perfil agradava ao experiente delegado Benedito de Carvalho Veras, que os recrutou em 1957 quando cursavam o último ano de Direito e faziam estágio na polícia. Veras, que se tornaria secretário de segurança do governador Jânio Quadros no ano seguinte, estava à procura de quadros para modernizar a polícia, sob orientação do Programa do Ponto IV – idealizado  pelo presidente americano, Harry Truman, com o objetivo de prevenir a “infiltração comunista”.

Isso se traduzia na combinação de ajuda econômica e treinamento das forças policiais dos países da região.

A intenção era “profissionalizar” a polícia brasileira – sobretudo os que lidavam com crimes políticos e sociais – para que barrassem o comunismo sob qualquer governo.

No mesmo ano em que Veras assumia a secretaria de segurança e nomeava Bonchristiano como delegado substituto de polícia, uma deputada (Conceição da Costa Neves, do PTB, que fazia oposição ao então governador Jânio Quadros) denunciava publicamente ter sido vítima de um grampo telefônico.

“Foi o primeiro grampo que se tem notícia em São Paulo”, conta o ex-delegado, que conheceu de perto o autor da “inovação tecnológica”, o escrivão Armando Gomide, futuro agente do Serviço Nacional de Informações (SNI). Gomide havia aprendido o “grampo” com os instrutores do Ponto IV, que também forneceram equipamentos para melhorar a qualidade das gravações.

Em 1962, o programa passou a ser dirigido pelo OPS – Office of Public Safety – uma “célula da CIA incrustrada dentro da AID (Agency for International Development, no Brasil, mais conhecida como USAID)”, nas palavras da professora Martha Huggins.


Além de treinar 100 mil policiais no Brasil, a OPS-CIA selecionava policiais e oficiais militares para estudar em suas escolas no Panamá (1962-1964); e nos Estados Unidos, depois que a Academia Internacional de Polícia (IPA) foi inaugurada em 1963 em Washington, funcionando até 1975.

No Brasil, o OPS ficou até 1972, quando o Congresso americano começou a investigar as denúncias de que o programa patrocinava aulas de tortura.

A IPA foi um das “escolas” nos Estados Unidos que recebeu Bonchristiano antes mesmo do golpe militar. Dois anos antes – logo depois de ser aprovado no concurso para delegado de 5ª classe, o início da carreira, ele já frequentava a casa do diretor DOPS Ribeiro de Andrade, no Jardim Lusitânia, em São Paulo. “Ele estava sempre de portas abertas para nós, ficávamos lá conspirando”, ironiza.

Foi ali que Bonchristiano conheceu o policial americano Peter Costello, que veio para o Brasil em 1962 como instrutor da OPS depois de treinar 2.500 homens em técnicas de controle de distúrbios na Coréia.

“Era um sujeito austero, falava português e entendia de polícia, deu curso de algemas, tiro rápido e outros para os policiais do DOPS, conta, completando: “Alguns meninos do CCC também participaram”.

Antes de 1964 os delegados do DOPS já contavam com a ajuda dos americanos para identificar os “comunistas”, muitos deles presos logo depois do golpe. “A ordem que a gente tinha desde o começo era identificar e prender todos os comunistas. Queríamos acabar com o Partido Comunista”, diz Bonchristiano.
Para contribuir com essa missão, “o Ponto IV nos contemplou com fotografias dos frequentadores (brasileiros) dos cursos de guerrilha na China”, relatou Renato d’Andrea, um dos delegados que foram da turma de Bonchristiano na PUC, ao jornalista Percival de Souza.

Na primeira operação importante que Bonchristiano realizou no DOPS, em abril de 1964, foi a vez de retribuir, entregando aos americanos as 19 cadernetas apreendidas na casa do líder comunista Luiz Carlos Prestes. As cadernetas foram xerocadas nos Estados Unidos (aqui ainda não existia o xerox) e retornaram 15 dias depois para o Brasil, servindo de base para a prisão de diversos militantes comunistas.

Só sobraram as cópias das cadernetas de Prestes, hoje nos arquivos do DOPS – os originais, segundo o “doutor” Paulo, desapareceram. Por aqui as cadernetas serviram de base a um dos maiores IPMs da primeira fase da ditadura, e foram usadas como justificativa para a prisão de diversos militantes comunistas como Carlos Marighella, que o próprio Bonchristiano foi encarregado de conduzir a São Paulo, depois que ele havia sido preso e baleado em um cinema no Rio, em 1964. Solto em 1965, Marighella foi assassinado em uma emboscada de policiais do DOPS em 1969.

“É uma bobagem danada dizer que a CIA mandava no DOPS, que nós éramos agentes da CIA, não era nada disso, nós éramos delegados do DOPS”, resmunga o doutor Paulo.

“A América do Sul sempre foi o quintal dos Estados Unidos, e eles olhavam muito para nós, tinham medo do Brasil se tornar comunista. E notaram que tinha um departamento de polícia em São Paulo que trabalhava firme nisso. Porque o DOPS de São Paulo fazia todos os levantamentos que conduzissem a algum elemento do Partido Comunista em todo o Brasil, na América Latina inteira”.


Mr. Dops e Mr. Bond

“Depois que o presidente Truman criou a CIA, era a CIA que acompanhava o movimento dos subversivos”, continua. “Então trabalhávamos juntos, viajávamos juntos em muitos casos, mas nossas reuniões eram fora do DOPS, na happy hour de bares de hotéis como o Jandaia e o Jaraguá, no centro de São Paulo. O Fleury também ia, o Flaquer, o Gama e Silva e até o Carlos Lacerda (ex-governador do Rio, que conspirou pelo golpe e acabou sendo cassado em 1968).

O Niles Bond era chefe lá deles, sujeito bacana, conhecia bem o Brasil, e gostava muito de mim. Me chamava de Mr. Dops, porque eu sempre o atendia em tudo que precisava e era ele que me mandava para Langley”, frisa mais uma vez, mostrando uma foto sua com trajes de George Washington ao lado de um colega fantasiado de soldado federalista, tirada durante uma de suas estadas em Washington (FOTO).


“Não lembro quando foi tirada porque estive oito vezes em cursos de treinamento nos Estados Unidos (entre 1963 e 1970)”, diz ele. “Fiz cursos técnicos, de polígrafo, técnicas de inteligência, infiltração. E sobre o comunismo também, eles tinham verdadeira obsessão. Saí de lá convencido de que eles, sim, são duros, fazem o que for preciso para garantir seus princípios”.

Entre 1959 e 1969, Niles W. Bond foi adido da embaixada no Rio e cônsul geral em São Paulo, segundo seu currículo na Association for Diplomatic Studies and Training, que também aponta a ligação com a CIA desde 1956, quando era assessor político da embaixada italiana.

Langley, frequentemente usado como sinônimo de CIA nos Estados Unidos, é o nome dos arredores da pequena cidade de McLean, na Virginia, onde desde o início da década de 1960 ficam os “headquarters” da agência de inteligência americana, a alguns quilômetros de Washington.

Com o tempo, descobri que quando o doutor Paulo se referia a Langley, significava que estava em treinamento em instalações na CIA, não apenas na sede, mas “em muitos outros lugares, até na Flórida”, como confirmou depois.

As informações sobre a CIA foram reveladas por doutor Paulo quando o inquiri sobre sua transferência, em 1ª de setembro de 1964, para o Ministério da Guerra, lotado no II Exército – informação que obtive checando todas as suas nomeações, transferências e promoções no Diário Oficial (seu currículo oficial omite essa significativa passagem).

Ele diz que foi transferido porque havia sido encarregado (com mais três delegados) de montar um plano de estruturação da Polícia Federal pelo general Riograndino Kruel, irmão do comandante do II Exército, Amaury Kruel (ambos também treinados nos Estados Unidos):

“O Edgar Hoover (fundador do FBI) é um cara que admiro muito, e os americanos achavam muito importante montar uma polícia como essa no Brasil – o DOPS paulista já atuava como polícia federal, mas era subordinado à secretaria de segurança estadual, o que atrapalhava nossos movimentos”, explicou.

Até hoje a Polícia Federal registra seus agradecimentos à “revolução de 1964” no site oficial da entidade: “Somente em 1964, com a mudança operada no pensamento político da Nação, a idéia da criação de um Departamento Federal de Segurança Pública, com capacidade de atuação em todo o território, prosperou e veio a tornar-se realidade”.


O capitão americano e a guerrilheira

“Felizmente aqui no Brasil não fizemos como em outros países, matanças. Não houve isso. Houve só morte de quem quis enfrentar a polícia. Isso em qualquer lugar do mundo. Quando uma guerrilha deles lá, um aparelho, matou o nosso colega lá em Copacabana, o Moreira, o que nós tinhamos que fazer? Descobrir os caras e matar também”, ri. “Polícia é assim”, avalia o “doutor” Paulo.

Dulce de Souza Maia, militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) sentiu na carne o peso dessa vingança, quando foi presa na madrugada do dia 25 de janeiro de 1969, enquanto dormia na casa da mãe.

Dois dias antes, vários líderes da VPR tinham sido presos e os repressores já sabiam que ela havia participado de um atentado a bomba no II Exército, que matou o sentinela Mario Kozel Filho. Também havia sido erroneamente apontada como uma das autoras do atentado que em 1968 matou o capitão do Exército americano, Charles Chandler, acusado pelos guerrilheiros de dar aulas de tortura no Brasil a serviço da CIA.

Dulce não sabe dizer se todos que a torturaram no quartel da Polícia do Exército eram militares, mas sua lembrança mais forte é a cara redonda do homem que a estuprou, depois de dar choques em sua vagina. “Eu aguentei 48 horas”, me disse, por telefone. “Depois acabei dando um endereço de um apartamento que eu conhecia porque tinho ido a uma feijoada, não era um aparelho”.

Foi então levada para o DOPS, metida em uma viatura com uma equipe de policiais dos quais não sabe o nome: “Nem lembro das caras, estava quase morta, sei que eles me levaram para a rua Fortunato e apontei o prédio que só reconheci porque tinha parado o meu carro na frente no dia da feijoada – eu não sabia que o João Leonardo, que inclusive era de outra organização (ALN), morava ali. Lembro só que o vi quando a porta abriu”, lamenta.

A versão do delegado Bonchristiano sobre o mesmo episódio omite detalhes significativos. “Nós estávamos atrás dos caras que mataram o Chandler, coitado, executado na porta da casa dele, no Sumaré. Em 36 horas, o Cara Feia, um tira excepcional que já morreu, sabia quem tinha feito. Aí, uma menina que nós prendemos, nos conta de uma reunião na Rua Fortunato, perto da Santa Casa da Misericórdia. Eu fui com a menina. Mandamos ela tocar a campainha.

Peguei o professor que era o dono do apartamento, prendemos”, contou. “Voltamos para o DOPS, eu, Tiroteio, Cara Feia e a menina e deixei dois tiras, o Raul Careca e o Nicolino Caveira, para ver se acontecia mais alguma coisa. Telefone.

‘Doutor, o senhor tem que vir aqui, teve um problema’. ‘Muito problema?’ ‘Demais’, quando é demais é que houve morte. Quando cheguei lá, tinha sangue para todo lado. O Raul Careca, que era um ótimo atirador, tinha dado 18 tiros no Marquito (Marco Antonio Brás de Carvalho). Aí que eles me contaram o que tinha acontecido: esse que matou o Chandler tinha chegado e quando abriu a porta, falou assim: “Quem são vocês?” E os tiras: “Nós somos da família”. “Ah é?” E puxou a arma. Os tiras revidaram e ele morreu”.
Bonchristiano jamais mencionou que a “menina” estava quebrada pela tortura. Mas corrigiu a versão que consta do depoimento de Raul Careca em um processo movido pela família de Marquito. Ali ele dizia que foram dois os tiros disparados.


Mano nera

“O caso Chandler gerou consternação, mas, sobretudo preocupação entre o grupo de assessores policiais, pois estes poderiam tornar-se alvo também. Participaram das investigações e ajudaram a identificar as armas utilizadas, enviando o material para estudo em laboratórios de criminalística do FBI”, relata o professor Rodrigo Patto, da UFMG, que estuda a relação entre a USAID e a CIA.

Patto, porém, não sabe dizer se Chandler era de fato da CIA como acreditavam os militantes da ALN e da VPR que decidiram matá-lo. “Ele havia estado no Vietnã, e estava oficialmente em viagem de estudos no Brasil”, diz.

Em seguida ao assassinato de Chandler, um ex-instrutor americano de Bonchristiano, Peter Ellena, veio para o Brasil para acompanhar as investigações, o que melindrou o pessoal do DOPS.

“Demos para ele a mano nera (símbolo da máfia), a mão negra ensaguentada”, diverte-se, contando que os policiais simularam um bilhete de ameaças dos guerrilheiros para assustar o “gringo”. “Ele ficou morrendo de medo”.

O jornalista Percival de Souza relata que o DOPS produzia relatórios confidenciais diários sobre o caso para o consulado americano, e que descobriram o fio da meada que os levaria a Marquito, “menos de um mês depois do fuzilamento”, registrando em seguida a versão que Bonchristiano continua a defender: um acidente ocorrido na BR-116 no dia 8 de novembro de 1968, na altura de Vassouras (RJ), teria matado Catarina e João Antonio Abi-Eçab que estava em um fusca.

Ao socorrer o casal, a polícia teria encontrado uma metralhadora INA calibre 35, como a que matou Chandler. O DOPS foi avisado, e Bonchristiano viajou imediatamente a Vassouras. Lá o delegado teria descoberto que o casal, militante da ALN, teria ido ao Rio de Janeiro para encontrar Marighella, e que a metralhadora era a mesma que matou Chandler. Tinha encontrado a arma do crime.

O “teatrinho”, como os policiais chamavam as versões criadas para encobrir seus crimes, foi desmontado a partir do relato de um ex-soldado do Exército ao jornalista Caco Barcellos, em 2001, em que reconheceu Catarina “como presa, torturada e morta em um sítio em São João do Meriti (município vizinho a Vassouras)” e afirmou que os órgãos de repressão, após a execução, teriam forjado o acidente.

Mais uma vez a “eficência” do DOPS veio da tortura. Bonchristiano, que insistiu até o fim na desmentida versão, diz que foi cumprimentado por Niles Bond pelo feito. “O Chandler era um dos nossos, frequentava nossas reuniões, o Bond sabia que eu ia resolver o caso”, gaba-se.


Esticadinha no chão

Em 1983, os ventos democratas extinguiram o DOPS e trouxeram um novo delegado geral, Maurício Henrique Pereira Guimarães, que despachou Bonchristiano para uma obscura seção da Secretaria de Justiça, encarregada das viúvas dos soldados mortos na II Guerra.

“Preferi me aposentar, hoje não acredito mais em nada. Fiz o que o presidente queria, os militares queriam, e não ganhei nem aquelas medalhinhas que eles davam para todo mundo”, desdenha, referindo-se à Medalha do Pacificador, entregue pelos militares a torturadores famosos.

Mas o Mr. Dops não tem muito do que reclamar. Em seus primeiros oito anos de DOPS subiu da 5ª para a 1ª classe, como só acontecia aos que participavam da linha de frente da repressão.

Ficou um tempo na “geladeira” quando um desafeto, o coronel Erasmo Dias, assumiu a secretaria de segurança (1974-1979). Mas conseguiu depois a promoção a delegado de classe especial e se aposentou no topo da carreira, em 1984.

A família, porém, ainda sofre com o passado do delegado. A filha, uma artista plástica, escolheu o prédio do antigo DOPS como cenário de uma performance acadêmica. No Facebook, comenta que o pai ficou “do lado dos algozes da ditadura”, enquanto uma de suas filhas – neta de Bonchristiano –  faz campanha pela Comissão da Verdade em seu perfil.

Dona Vera sente a distância dos netos e lembra com amargura do tempo em que o marido trabalhava no DOPS. Via-se sozinha dias a fio com três filhos pequenos: “Eu não podia falar com ele nem por telefone, ligava lá e me diziam ‘a senhora fica tranquila que ele está bem’”, conta. “E eu, apavorada com as ameaças que a gente recebia por telefone, meus filhos iam escoltados para a escola”, diz.

Ela traz ainda outra lembrança: “Uma vez, minha filha era pequenininha, e quando o Campão, que trabalhava para o Zé Paulo, veio buscá-la para escola, ela desatou a chorar ao ver aquele homão, parecia um índio, vestido de amarelo da cabeça aos pés”, diz.

“Era o meu motorista no DOPS, depois veio me pedir licença para trabalhar com o Fleury, ‘lá a gente ganha mais, né doutor?’ Já morreu, coitado”, interveio Bonchristiano.

José Campos Correia Filho, o Campão, era um conhecido torturador – dos mais cruéis – segundo Percival de Souza, e membro do Esquadrão da Morte. Além de motorista do “doutor”, ele conduzia cadáveres levados do DOPS na calada da noite para desová-los nos cemitérios de periferia, segundo o próprio Bonchristiano.

No final de novembro de 2011, o governador Geraldo Alckmin acatou o lobby da Associação de Delegados de São Paulo (cujo patrono é o falecido delegado Antonio Ribeiro de Andrade, o primeiro chefe de dr. Paulo no DOPS) e mandou para a Assembléia Legislativa um projeto de lei que equipara as carreiras de delegados de polícia, procuradores e promotores, sob o argumento de que a polícia civil é judiciária, e portanto deve ser ligada ao Poder Judiciário e não à Secretaria de Segurança Pública.

O projeto, que o “doutor” Paulo muitas vezes defendeu em nossas entrevistas, faria sua aposentadoria pular dos atuais 11 mil reais para cerca de 20 mil reais, de acordo com os cálculos que ele mesmo fez.
A partir do momento em que o acalentado projeto foi enviado para a Assembleia, o ex-delegado resolveu encerrar nossas conversas.

Retornei uma última vez a seu apartamento, em janeiro deste ano, para checar alguns dados e ele deixou escapar o trecho de uma conversa que tive com um dos meus filhos, por celular. Estava disposto a me assustar.

Na despedida, preveniu-me mais uma vez sobre o “perigo” que “nós dois” estaríamos correndo se eu levasse adiante qualquer investigação sobre a localização dos corpos desaparecidos, advertência que fez desde a primeira entrevista.

Perdi a paciência: “Mas, doutor, quase todo mundo que o senhor conheceu naquela época já morreu! Nós vivemos em uma democracia, ninguém vai matar assim um jornalista ou um delegado aposentado”.

“Isso é o que você pensa”, retrucou. “Os que hoje ocupam os cargos daqueles, antigos, também assumiram o compromisso de proteger o pacto”, afirmou. “Não tem isso de democracia, minha cara jornalista, eles fazem o que precisa ser feito.

Se alguém é atropelado ou baleado no trânsito, é uma coisa que acontece, em São Paulo. Não quero ver você esticadinha no chão”.

Quando entrei no taxi para ir embora, refletindo sobre quem afinal estaria ameaçando quem, lembrei de uma ocasião em que nossas relações eram mais amistosas e pude lhe perguntar por que “eles” tinham enterrado os corpos, em vez de atirá-los ao mar ou incendiá-los para apagar definitivamente as provas.

De pé, na sala decorada com os estofados confortáveis, rodeados por mesinhas enfeitadas com fotos de família e bibelôs de inspiração religiosa, Bonchristiano reagiu: “Nós somos católicos, pô!”.


Fotos: Julia Rodrigues

Fonte: www.apublica.org