O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira
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Por José Carlos Moreira da Silva Filho
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Esta é a versão integral do artigo de mesmo título publicado, em versão reduzida, em: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (coords.). Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Fórum, 2010.
Este artigo é fruto de projeto de pesquisa desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Direito à Memória e à Verdade e Justiça de Transição, com sede no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. O projeto de pesquisa, do qual resultou este artigo, obtém auxílio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e conta com bolsa de iniciação científica da Federação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - FAPERGS.
** Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná - UFPR; Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB; Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais – Mestrado e Doutorado - e Graduação em Direito); Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST.
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A Justiça de Transição foi denominada da seguinte forma em documento produzido pelo Conselho de Segurança da ONU: "A noção de ‘justiça de transição’ discutida no presente relatório compreende o conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais e extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a destruição de um cargo ou a combinação de todos esses procedimentos" (NAÇÕES UNIDAS – Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretário Geral S/2004/616. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p.320-351, jan.-jun. 2009. p.325). Ver também: SOARES, Inês Virginia Prado. Justiça de Transição. In: Dicionário de Direitos Humanos. Brasília: ESMPU.
Texto completo: http://idejust.files.wordpress.com/2010/07/o-julgamento-da-adpf-153-pelo-supremo-tribunal-federal-e-a-inacabada-transicao-democratica-brasileira.pdf
Parte:
(...)
A Indiferença ao Direito Internacional Humanitário
Eros Grau relacionou em seu voto um histórico das Anistias ocorridas no Brasil e também da jurisprudência do STF sobre o tema. Começa em 1900 e avança até a Anistia de 197970.
O claro intuito do juiz com tal recurso é dar a impressão de uma unicidade histórica tanto do perfil das Anistias ocorridas quanto da jurisprudência do Supremo sobre elas, enxergando na manutenção de uma mesma tendência política e jurisprudencial durante um século algum tipo de virtude.
É espantoso, porém, que o surgimento dos chamados crimes contra a humanidade no segundo pós-guerra não tenha trazido ao Brasil nenhuma influência na compreensão do conceito de Anistia, muito menos tenha sido referido ou mencionado em qualquer um dos votos dos Ministros e Ministras do STF.
Eis as perguntas incômodas que a referência a tais tipos de crimes traria: É possível a Anistia para crimes contra a humanidade? Caso afirmativo, em quais circunstâncias?
A figura dos crimes contra a humanidade surge pela primeira vez no Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945, que institui o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg e o torna competente para julgar crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
É muito importante a distinção entre estes dois tipos de crimes, pois será principalmente por este caminho que se poderá demonstrar a tibieza dos argumentos que descrevem a ditadura como uma guerra entre dois lados.
Sinalizar a existência de crimes de guerra pode nos levar a admitir a existência de uma guerra justa. Desde tempos imemoriais é possível identificar guerras que, deflagradas em nome de algum objetivo considerado justo e sagrado, eram justificadas e legitimadas, como foi o caso tanto das Cruzadas quanto das guerras coloniais que ocorreram no território americano, onde os indígenas eram massacrados "para o seu próprio bem"71.
Contudo, mesmo sem aceitar que uma guerra possa ser classificada como justa72, pode-se reconhecer a importância da existência de um direito da guerra.
Este direito, explicitado de modo pleno nas Convenções de Genebra, parte do pressuposto de que as mortes e violências causadas no cenário de uma batalha entre dois exércitos inimigos não se traduz em um crime de guerra.
Tem-se aqui a pressuposição de um equilíbrio de armas entre os contendores. Ademais, para que a guerra não descambe para o crime de guerra ou para o crime contra a paz ela deva ter objetivos estratégicos definidos, como a conquista de um território, por exemplo.
Na medida em que o cenário da guerra sai do campo de batalha e se desloca para o cativeiro dos prisioneiros ali feitos, o equilíbrio que antes autorizava a violência contra o inimigo agora já não mais existe.
Daí a necessidade de se estabelecer alguns limites que delineiam entre outras coisas a terminante vedação da tortura e o respeito aos direitos humanos mais básicos dos prisioneiros.
Se na guerra não criminosa pressupõe-se um forte equilíbrio entre as partes - uma reciprocidade - no crime contra a humanidade pressupõe-se um absoluto desequilíbrio – a ausência total de reciprocidade73, a negação da vítima como pessoa74, sua anulação completa seja pela tortura seja pela sua inclusão em um campo de concentração.
No campo não ocorre apenas a eliminação física dos internos, antes que isto ocorra eles são privados de sua identidade jurídica, perdendo a sua nacionalidade em muitos casos e ficando totalmente fora-da-lei e desprotegidos75. A existência ou não de culpa é totalmente irrelevante, visto que são inimigos objetivos, para os quais de nada valem os direitos humanos.
Após a morte jurídica vem a morte moral. A própria escolha moral é eliminada, em uma passividade absoluta que imobiliza qualquer ação. No caso das torturas sistemáticas ocorridas durante as ditaduras do Cone Sul, a escolha moral era eliminada na medida da inevitabilidade da delação para muitos dos prisioneiros que foram torturados.
Nestes casos, a pessoa trocava a interrupção da deterioração brutal de sua integridade física pela destruição da sua integridade moral.
O fato é que, como assinala Agamben, o campo passa a ser um novo padrão político que estrutura a civilização. Quando ele afirma que "tudo é campo", aponta para a possibilidade de que o campo possa se instalar em qualquer lugar e em relação a qualquer pessoa76.
Ou seja, até mesmo o fato de se possuir teoricamente alguns direitos não impede que a pessoa, uma vez inserida nesse espaço de exceção, seja tratada como se não tivesse "direito a ter direitos".
Os casos mais emblemáticos de aparição dessa "vida nua" são os apátridas, os refugiados, os internos dos campos de concentração e os prisioneiros dos porões ditatoriais.
Contudo, sua aparição se dissemina visivelmente,na contemporaneidade, para outros espaços, nos quais os direitos e os atributos de nacionalidade e cidadania já não valem nada e são impotentes para evitar a completa descartabilidade das pessoas que estão nesses lugares, como é o caso, por exemplo, das penitenciárias brasileiras e das próprias periferias, marcadas pela pobreza e exclusão étnica.
Nunca é demais dizer que a tortura no Brasil continua ocorrendo em profusão77, apenas com a mudança de foco do subversivo para o pobre78.
O crime contra a humanidade foi inicialmente definido, no Acordo de Londres de 194579 em seu artigo 6º, como (chancela?) a legalidade de um sistema ilegítimo e desumano, projetando-se para as escolas, a imprensa, a igreja, o setor produtivo, enfim, alastrando-se por toda a sociedade85.
Tais crimes são chamados de crimes contra a humanidade porque eles visam à completa eliminação de parcela inerente à diversidade humana, expulsando este grupo da comunidade política e atacando a base do que permite a própria existência da política: a pluralidade humana86.
É o Estado que tem se revelado o principal autor dos crimes contra a humanidade. E isto traz um agravante, pois é justamente o Estado quem deveria proteger os seus cidadãos da violação dos seus direitos fundamentais87.
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Garapon é preciso sobre este ponto: "A violência inédita empregue pelo crime contra a humanidade consiste em utilizar os meios da guerra total contra uma parte da sua própria população, não só com o envolvimento militar – armamento maciço com tecnologia de ponta -, mas também mobilizando todos os recursos de uma sociedade, desde a administração, os transportes e a investigação científica até à imprensa e à justiça"
Após a breve caracterização feita sobre o que vem a ser o crime contra a humanidade, aparenta no mínimo imoral dizer como o fizeram alguns Ministros do STF que havia proporcionalidade entre os "lados". Que havia uma "disputa pelo poder".
Que é "a mesma situação histórica e, portanto, terá de receber um tratamento igual". Ou de que "há crimes de ambos os lados".
Devemos antes de tudo perguntar: é crime resistir, ainda que seja pelas armas, a um Estado ilegítimo, arbitrário, censor e que elimina do cenário jurídico as garantias mais básicas da pessoa humana?
Aqui o crime só deveria existir aos olhos da ditadura, pois para todos os que repudiam a prática dos crimes contra a humanidade tal ato merece outro nome: Direito de Resistência, fadado, todavia, dada a flagrante desproporção, a submergir na sua destruição, negação e perversão.
Os crimes contra a humanidade são, portanto, crimes internacionais, não dizem respeito apenas aos interesses internos da sociedade política na qual ocorreram.
Mesmo que o Estado não possua leis hábeis à apuração das responsabilidades de quem cometeu este tipo de delito, tal não o exime de sua responsabilidade internacional88.
A lupa pela qual os crimes contra a humanidade devem ser vistos não é a lupa do Direito nacional ou do Direito Penal, ambos voltados aos crimes comuns, mas sim a do Direito Internacional Humanitário. Tais crimes, pois, pela sua própria natureza, são imprescritíveis.
A sua imprescritibilidade decorre das normas, princípios e costumes do Direito Internacional, aos quais um Estado se vincula quando ratifica tratados e convenções, assumindo obrigações nesse plano.
Em nenhum dos documentos internacionais que tratam dos crimes contra a humanidade se faz qualquer referência a um limite de tempo para a apuração e responsabilização de tais crimes, exatamente pelo seu caráter e pela sua gravidade89.
A compreensão firmada na jurisprudência e nos documentos internacionais, seja da ONU ou da OEA, é de que a Convenção de 1968 apenas reconheceu algo que já existia como norma assentada no Direito Internacional pelo menos desde Nuremberg.
Foi este, por exemplo, o entendimento firmado pela Suprema Corte Argentina para declarar a inconstitucionalidade das Leis do Ponto Final e da Obediência Devida90.
Como se não bastasse isto, é conclusão difícil de ser rebatida a de que não se pode sequer cogitar de prescrição para os crimes de desaparecimento forçado, visto que configuram crimes permanentes, pois continuam a acontecer enquanto não é revelado o paradeiro do desaparecido.
Alguns Ministros do STF, porém, como Cezar Peluso, Celso de Mello e, principalmente, Marco Aurélio, entenderam que o debate em torno da interpretação da Lei de Anistia brasileira seria meramente acadêmico, pois, mesmo que se desse ganho de causa à autora, isto não teria efeito prático algum, já que todos os crimes estariam prescritos, inclusive os de desaparecimento forçado.
O Ministro Marco Aurélio, aliás, relembrou no voto da ADPF 153 o seu raciocínio na Extradição 974, relativa a Manuel Cordero Piacentini, agente da ditadura uruguaia que atuou intensamente na Operação Condor e foi o responsável por inúmeras mortes e desaparecimentos. Naquela ocasião, Marco Aurélio acabou sendo voto vencido quando negava totalmente a extradição de Manuel Cordero.
A sua justificativa era de que se os crimes de Cordero tivessem ocorrido no Brasil, eles estariam abrangidos pela Anistia, logo ao caso deveria ser aplicada uma espécie de "simetria".
Veja-se, pois, que para o Ministro, que semanas antes do julgamento da ADPF 153 concedeu entrevista em cadeia nacional na qual afirmou que a ditadura foi um "mal necessário", e que "foi melhor não esperar para ver" o que iria acontecer91, a Anistia brasileira, além de ser imune à noção de crimes contra a humanidade e ao influxo do Direito Internacional, possui uma impressionante extensão extraterritorial.
Voltando à pergunta formulada no início deste item, é admissível a Anistia para crimes contra a humanidade? Caso seja, em que circunstâncias?
Para responder a tais perguntas, é preciso partir de dois pressupostos básicos:
1) o repúdio à Anistia como exercício de esquecimento de crimes contra a humanidade;
2) a inexistência de uma fórmula abstrata na aplicação de mecanismos transicionais, estando esta a depender do contexto de cada sociedade em transição política.
Quanto ao primeiro pressuposto, Theodor Adorno demarcou incisivamente a sua imperiosidade:
O surgimento dos crimes contra a humanidade delineia uma ética negativa, isto é, não se sabe exatamente como se deve agir, mas sim como não se pode agir.
A referência de humanidade deixa de ser o virtual ser humano que reúne em si todos os atributos inerentes à dignidade da pessoa humana e passa a ser o concreto refugo humano, dos campos de concentração e dos espaços atingidos pelo alastramento do seu padrão político.
A memória torna-se a principal arma contra a repetição93. Isto não significa, contudo, que se possa afirmar que a Anistia deve ser varrida do mundo quando se defrontar com crimes contra a humanidade.
Na África do Sul estabeleceu-se na década de 90 um novo sentido para a Anistia: a Anistia sem esquecimento94.
No contexto da transição da África do Sul para um regime pós-apartheid, partiu-se do pressuposto de que impor julgamentos penais aos criminosos de lesa-humanidade que apoiaram a política delinqüente do apartheid poderia impulsionar uma verdadeira guerra civil, tal seria o nível de ressentimento da maior parte da população negra contra os seus antigos opressores.
A saída encontrada foi suspender a ordem jurídica normal, que desembocaria nos julgamentos, para colocar em ação um projeto de reconciliação que se estruturasse em dois grandes pilares: a verdade e a voz das vítimas95.
A Comissão se dirigia ao povo e por ele era permeada. Para que a verdade dos crimes do apartheid fosse revelada pelos seus agentes e para que se pudesse fortalecer o espírito de reconciliação, optou-se pela concessão da Anistia.
Simbolicamente, ocorre a aproximação do arrependimento que induz ao perdão96. Independente de ponderações críticas que possam ser feitas sobre a aceitação dessa saída restaurativa sul-africana, é indubitável que ela sinaliza para uma possibilidade de se permitir a Anistia para crimes de lesa-humanidade, com a condição de que a Anistia seja dissociada do exercício de esquecimento.
É no mínimo uma trapalhada histórica querer equiparar a Anistia sulafricana com a Anistia brasileira, mas é exatamente o que o Ministro Cezar Peluso faz em seu voto na ADPF 153:
Veja-se que na manifestação do Ministro vem a clara tentação de querer equiparar na moldura conceitual do "acordo", casos tão distintos como são o da África do Sul e o do Brasil.
Se a partir dos mecanismos restaurativos praticados no contexto sul-africano é possível cogitar-se da não realização de julgamentos penais para apurar crimes contra a humanidade, no caso brasileiro não estão presentes razões que sejam semelhantes para que se possa abrir mão de tais julgamentos.
Os agentes públicos que cometeram crimes contra a humanidade e seus mandantes no contexto da ditadura civil-militar brasileira não só não se
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Paul Ricoeur em seu livro A memória, a história e o esquecimento, dedica páginas memoráveis para tratar do perdão difícil. Conclui o filósofo que o perdão não pode voltar-se ao ato em si, absolutamente abominável, mas sim àquele que cometeu o ato. "Finalmente, tudo se decide na possibilidade de separar o agente de sua ação. Esse desligamento marcaria a inscrição, no campo da disparidade horizontal entre a potência e o ato, da disparidade vertical entre o muito alto do perdão e o abismo da culpabilidade. O culpado, que se tornou capaz de recomeçar, tal seria a figura desse desligamento que comanda todos os outros. (...) separar o culpado de seu ato, ou em outras palavras, perdoar o culpado sem deixar de condenar sua ação, seria perdoar um sujeito outro que não aquele que cometeu o ato" (RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François [et al. ]. Campinas: UNICAMP, 2007.p.500).
arrependeram publicamente dos seus atos, como até hoje impedem o acesso a documentos públicos que registram episódios não devidamente esclarecidos, insistindo no negacionismo (da política sistemática de torturas, por exemplo98) e projetando-o para parcelas desavisadas da sociedade brasileira99.
Que espécie de perdão pode ser cogitado neste contexto? Crê-se que apenas aquele perdão registrado pelo Ministro Ayres Britto em uma das passagens mais inspiradas do seu voto, ocorrida justamente quando leu trecho de um poema de sua autoria, intitulado A propósito de Hitler:
A humanidade não é o homem para se dar a virtude do perdão
A humanidade tem o dever de odiar os seus ofensores
Porque o perdão coletivo é falta de memória e de vergonha
Convite masoquístico à reincidência
100
Como se não bastasse a esdrúxula comparação e além de insistir na tese do "acordo", atacada no segundo item deste artigo, o Ministro Cezar Peluso tentou esquivar-se de maneira pouco convincente da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, segundo a qual a auto-Anistia para crimes contra a humanidade é inadmissível.
Aliás, nisto ele não ficou sozinho.
O Ministro Celso de Mello, apesar de ter sido o único magistrado que fez referência aos casos de Barrios Alto, do Peru, e de Aureliano Almonacid, do Chile101, exatamente os casos que consagraram a tese da vedação da auto-Anistia na jurisprudência da Corte Interamericana, afastou abruptamente a sua incidência do caso brasileiro, com o incompreensível argumento de que se a Anistia foi bilateral, logo ela não foi uma auto-Anistia.
Ora, ainda que a Anistia tenha favorecido os perseguidos políticos (não todos como se viu), o fato de ela ter se voltado, segundo interpretação até hoje chancelada pelo Poder Judiciário brasileiro, para os próprios agentes públicos e seus respectivos mandantes, em um processo de discussão e votação totalmente imposto por estes mesmos agentes e mandantes, em nada abranda a óbvia constatação de que se trata de uma auto-Anistia.
Repita-se, em 1979 o Brasil ainda era refém da ditadura civil-militar, e em 1977 o Congresso foi fechado tendo as regras da sua composição manipuladas com base no Ato Institucional Nº 5, para que nunca fosse possível a aprovação de um projeto de lei que contrariasse os interesses do governo ditatorial.
O resultado disto, como se viu, foi que o projeto enviado pelo governo Figueiredo ao Congresso Nacional foi aprovado sem que nenhuma das objeções feitas pela oposição fossem admitidas em qualquer etapa do processo.
Por fim, é preciso registrar igualmente a fragilidade do argumento de que se a ação fosse vencedora todos os Anistiados, inclusive os que foram perseguidos políticos, teriam suas Anistias anuladas. A Ministra Ellen Gracie chegou a mencionar que seria um "paradoxo" considerar a não recepção da Lei de Anistia pela Constituição de 1988, pois deste modo, ficariam excluídos todos os que já foram por ela beneficiados102.
O Ministro Cezar Peluso registrou que considerar o vício da fonte na produção da lei, ou seja, apontar a ilegitimidade do Congresso que a votou, nos levaria a considerar revogadas todas as leis produzidas no período, anulando, inclusive, todas as Anistias concedidas103.
Ora, é cristalino que a ação proposta pela OAB não tinha em mira toda a Lei de Anistia de 1979, mas sim a interpretação dada ao Art.1º, §1104.
O grande problema aqui apresentado não diz respeito simplesmente à ilegitimidade do Congresso Nacional à época da aprovação da Lei, o que está em jogo é a possibilidade de se convalidar um aspecto desta Lei, que é conflitante não só com os princípios da Constituição de 1988, mas com os princípios do Direito Humanitário Internacional e dos seus organismos, tratados e instituições, exatamente ali onde ela pode se mostrar complacente com o cometimento de crimes contra a humanidade, demarcando sem apelo a auto-Anistia entre nós.
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