PERGUNTEM À MOHAMED VI - REI DO MARROCOS - E SEUS CÚMPLICES FRANCESES, ESPANHÓIS E NORTE- AMERICANOS...
O que é um suplício?
“(…)
Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das
costas da mão mal e mal sofreu. Depois, um executor, de mangas
arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço preparadas
ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe
primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando às
duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em
arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três
vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada
parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras. Depois desses
suplícios, Damiens, que gritava muito sem contudo blasfemar, levantava
a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do
caldeirão daquela droga fervente e derramou-a fartamente sobre cada
ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas destinadas a
atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao
longo das coxas, das pernas e dos braços.”
Que é um suplício?
Pena corporal, dolorosa, mais ou menos atróz [dizia Jaucourt]; e acrescentava: "é um fenômeno inexplicável a
extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a
crueldade.(5)
Inexplicável, talvez, mas certamente não irregular nem selvagem. O suplício e uma técnica e não deve
ser equiparado aos extremos de uma raiva sem lei.
Uma pena, para ser um suplício, deve
obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar,
produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e
hierarquizar; a morte e um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação - que reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só
instante: o grau zero do suplício - até o
esquartejamento que os leva quase ao infinito, através do enforcamento, da fogueira e da roda, na qual se agoniza
muito tempo; a morte-suplício é a arte
de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em "mil mortes" e
obtendo, antes de cessar a existência, the
most exqidsite agonies.(6)
O suplício repousa na arte quantitativa do
sofrimento. Mas não e só: esta
produção é regulada. O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos
com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas.
Há um código jurídico da dor; a pena, quando é
supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: número de golpes de açoite,
localização do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou na
roda (o tribunal decide se e o caso de estrangular o paciente imediatamente, em
vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto tempo esse gesto de piedade
deve intervir), tipo de mutilação à impor (mão decepada, lábios ou língua furados).
Todos esses diversos elementos multiplicam as penas e se combinam
de acordo com os tribunais e os crimes: "A poesia de Dante posta em
leis", dizia Rossi; um longo saber fisicopenal, em todo caso.
Além disso, o suplício faz parte de um ritual. É um
elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências.
Em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se, ou pela cicatriz
que deixa no corpo, ou pela ostentação de que
se acompanha, a tomar infame aquele que é sua
vitima; o suplicio, mesmo se tem como função
"purgar" o crime, não reconcilia; traça em torno, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado sinais que no devem se apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente
constatados.
E pelo lado da justiça que o
impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado
por todos, um pouco como seu triunfo.
O próprio excesso das violências cometidas é uma das
pecas de sua glória: o fato de o culpado gemer ou gritar com os golpes não constitui algo de acessório e
vergonhoso, mas é o próprio cerimonial
da justiça que se manifesta em sua força.
Por isso sem dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte:
cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos arrastados
na grade, expostos a beira das estradas. A justiça persegue
o corpo além de qualquer sofrimento possível.
O suplício penal não corresponde a qualquer punição
corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual
organizado para a marcação das vítimas e a
manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma
justiça que, esquecendo seus princípios,
perdesse todo o controle. Nos "excessos" dos suplícios, se investe toda a economia do poder.
O corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial
judiciário que deve trazer a luz a verdade do crime.
Na Franca, como na maior parte dos paises europeus - com a
notável exceção da Inglaterra - todo o processo criminal,
até a sentença, permanecia secreto: ou seja opaco não só para o público mas
para o próprio acusado.
O processo se desenrolava sem ele, ou pelo menos sem que ele
pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as provas.
Na ordem da justiça
criminal, o saber era privilégio absoluto da acusação. “O mais diligente e o mais secretamente que
se puder fazer", dizia, a respeito da instrução, o
edito de 1498.
De acordo com a
ordenação de 1670, que resumia, e em alguns pontos reforçava, a severidade da época precedente, era
impossível ao acusado ter acesso as peças do processo, impossível conhecer a
identidade dos denunciadores, impossível saber o sentido
dos depoimentos antes de recusar as testemunhas, impossível fazer valer, até os últimos momentos do processo, os fatos justificativos, impossível ter um advogado, seja para verificar a regularidade do
processo, seja para participar da defesa.
Por seu lado, o
magistrado tinha o direito de receber denuncias anônimas, de esconder ao acusado a natureza da causa, de
interrogá-lo de maneira
capciosa, de usar insinuações.(7)
Ele constituia,
sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado; e essa
verdade, os juízes a recebiam pronta,
sob a forma de peças e de relatórios escritos; para eles, esses documentos sozinhos comprovavam;
só encontravam o acusado uma vez para interrogá-lo antes de dar a sentença.
A forma secreta e
escrita do processo confere com o princípio de que em matéria criminal o estabelecimento da verdade era para o
soberano e seus juízes um direito absoluto
e um poder exclusivo.
Ayrault supunha que esse procedimento (ja estabelecido no
que tange ao essencial no século XVI) tinha por origem o medo dos
tumultos, das gritarias e aclamações que o
povo normalmente faz, o medo de que houvesse desordem, violência e impetuosidade contra as partes talvez até mesmo contra os juízes;
o rei quereria
mostrar com isso que a "força soberana" de
que se origina o direito de punir não pode em caso algum pertencer a “multidão”.(8)
Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se
calar.
NOTAS
CAPITULO I
(…)
5. Robert Vaux,
Notices, citado in N.K. Teeters, They
were in prison, 1937, p. 24.
6. Archives
parlamentaires, 2a serie, t. LXXII, l dez. 1831.
7. C. de
Beccaria, Traite des delits et des peines, 1764, p. 101 da edicao dada por F.
Helie em 1856 e que sera citada aqui.
8. B. Rush, diante da Society for promoting politica! enquiries, in N.K.
Teeters, The Cradle of the Penitentiary, 1935, p.30.
...
MICHEL FOUCAULT
VIGIAR E PUNIR
NASCIMENTO DA PRISÃO
Tradução de Raquel Ramalhete
29ª Edição
EDITORA VOZES
Petrópolis 2004
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