CARTA ABERTA AO EXCEPCIONAL CIDADÃO BRASILEIRO,
DR. DRAUZIO VARELLA
"Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é também a prisão. Hoje em dia, o lugar próprio, o único lugar que Massachusetts reserva para os seus habitantes mais livres e menos desalentados são as suas prisões, nas quais serão confinados e trancados longe do Estado, por um ato do próprio Estado pois os que vão para a prisão já antes tinham se confinado nos seus princípios. E aí que devem ser encontrados quando forem procurados pelos escravos fugidos, pelo prisioneiro mexicano em liberdade condicional e pelos indígenas, para ouvir as denúncias sobre as humilhações impostas aos seus povos; é aí, nesse chão discriminado, mas tão mais livre e honroso, onde o Estado planta os que não estão com ele mas sim contra ele - a única casa num Estado-senzala na qual um homem livre pode perseverar com honra."
THOREAU, HENRY DAVID. A DESOBEDIÊNCIA CIVIL. 1848
Estimado Dr. Drauzio Varella.
Não lhe conheço pessoalmente. Quiçá um dia terei esta grande honra.
Na verdade, a primeira vez que notei sua presença não foi pela sua reconhecida competência na área médica. O que chamou minha imediata atenção foi a extraordinária semelhança física com meu querido avô, o vô Moso.
Tudo no senhor faz lembrar daquela amada figura humana. Tão serena, de voz doce, de entonação cativante e aparência professoral. Sem perder a autoridade, conquistada e assegurada pela reta conduta e não pelo discurso acima do tom, nunca levantava a voz.
Jamais assisti alguém desafiar suas ordens, lançadas que nem flechas através dos olhos azuis que contrastavam com sua tez morena...calvo desde jovem, gostava de usar uma linda boina de lã e jogar bolão, onde sua técnica insuperável se sobressaia e o consagrou como um jogador eternamente campeão.
Tranquilo diante das adversidades diárias, nunca usou o robusto e ameaçador relho de couro, preso na parede com uma argola de aço e colocado estrategicamente em um lugar bem visível.
Feita as apresentações, diante das agressões que o Dr. vem sofrendo, mesmo sabendo que o senhor não precisa de defensores pois a reputação que o senhor construiu é suficiente para repelir tamanha insanidade, decidi expressar minha solidariedade e revelar meu respeito e admiração por vossa pessoa, orgulho para o nosso país.
Assim, após as primeiras impressões passei a escutá-lo sempre que havia uma oportunidade, tornadas frequentes com suas aparições no Fantástico, lançamento de livros e filmes.
Toda vez que o Dr. aborda um assunto peço silêncio para quem estiver na sala e anuncio: tem um craque falando! Nunca me decepcionei com o desinteressado aval.
Domingo retrasado não foi diferente...quando o Dr. apresentou a reportagem no presídio sobre seres humanos trans ali segregados.
Agora uma pequena regressão...
Sou casado com minha amada esposa faz 43 anos, temos três filhos e dez netos. Ela professa a fé cristã, convertida faz uns 20 anos, e frequenta regularmente uma Igreja evangélica.
Ao longo destes 20 anos, alguns princípios basilares da fé cristã me levou a admirar a Instituição: a honestidade de propósitos, a solidariedade, a forma cordial e receptiva como você é recebido no ambiente cristão; a insuperável defesa da família; a persistente luta contra os vícios ditos sociais (drogas lícitas e ilícitas); e o perdão, isto mesmo, O PERDÃO.
Considero a capacidade de perdoar o ápice da condição humana, junto com a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a gratidão e o livre arbítrio.
Por que trago estas questões agora? o que tem a ver com as agressões sofridas pelo emérito cidadão Drauzio?
Duas condições mudaram radicalmente nas igrejas evangélicas nos últimos 20 anos:
1) havia uma firme posição nos cultos evangélicos em relação ao ostensivo apoio para candidatos que disputavam cargos públicos, no sentido de não permitir campanha dentro das igrejas.
Hoje o púlpito se transformou em palanque e o apoio da comunidade via pastor é comprado a peso de ouro. A disputa pelo poder político restou institucionalizada nas igrejas. São excepcionais e raras as exceções.
Assim, temos um nefasto discurso que confunde ética e moral, estado e igreja, lei e interpretações bíblicas, além da contraditória pregação que estimula amor aos irmãos e ódio aos que pensam diferente.
Mais, neste contexto, arautos da salvação da pátria assumiram a condição de mito, algo impensável até outro dia na fé cristã (evangélica) que é refratária aos santos, imagina aos de carne e osso.
2) a salvação era defendida e garantida à todas as pessoas, independente do crime que tivessem praticado, bastando para tanto a conversão na fé cristã.
Nesta senda, programas sociais dentro das igrejas tinham como escopo a visita permanente e assídua aos presídios, onde os salvadores desprezavam os riscos e peleavam pela conversão dos apenados.
Assim, Pastores se tornaram célebres pelo trabalho realizado junto aos presos. Quanto maior o crime praticado, maior era a comemoração pelo resgate daquela alma.
Estupradores, assassinos, pedófilos, ladrões, corruptos, estelionatários e traficantes eram bem-vindos, desde que, demonstrassem vontade de se converter.
Por vezes o duvidoso processo de conversão levava anos e envolvia pleno apoio às suas famílias lá fora. Muitas vezes os destemidos pastores foram acusados de fazerem parte de quadrilhas, mas nada os detinha, nada impedia a missão divina de conversão.
Quando os presos se convertiam era festa no céu. Muitos livros foram escritos sobre verdadeiras e profícuas conversões. Lembro de ex-apenados se tornarem pastores e comparecerem para dar palestras com o salão lotado, com autógrafos de livros ao final.
Confesso que tive divergências sérias com minha esposa sobre esta questão, e ainda tenho.
Ela acredita piamente na possibilidade de recuperação do ser humano que tenha praticado algum crime, a partir da sincera conversão. Eu respeito.
As pessoas que participaram da entrevista estão onde deveriam estar, ou seja, condenadas e presas pela prática de crimes. No caso concreto, objeto dos ataques desferidos contra um homem honrado, entendo que, quem pratica crimes contra idosos ou crianças é irrecuperável e deve permanecer segregado para sempre. Como sabemos, nossa legislação prevê pena máxima de reclusão de 30 anos.
O tema da entrevista era revelar para o público como vivem as pessoas trans no sistema prisional brasileiro. Não tratava a abordagem de vitimizar ou denunciar injusticas cometidas contra os apenados.
E o Dr. Drauzio, profissional médico com larga experiência junto a população carcerária, conduziu a reportagem como sempre faz: sem julgar, com empatia e respeito pelos entrevistados.
Voltando à entrevista do Dr. Drauzio...
A insana polarização política e o interesse comercial das emissoras concorrentes do plin-plin, aliadas ao governo de plantão, especialista na disseminação do ódio e da intolerância, acabou por respingar no Dr. Drauzio Varella.
Com o objetivo claro de atacar a Globo, grupos extremistas acionaram a máquina de moer carne e disparam ataques ao médico mais respeitado do Brasil, referência mundial na área.
Das pessoas que buscaram minha opinião sobre o assunto, nenhuma tinha assistido a entrevista. Os que não falaram comigo mas compactuam com as agressões não assistem a Globo por convicção ou por ordem de seus patrões, portanto, compraram o pacote de maldades pronto, embalado, sem filtro.
No cenário atual constatamos um retorno aos períodos mais sombrios da história quando vemos grupos extremistas afastarem-se da identidade partidária, que pelo menos no conteúdo programático zelam pelo bem comum, apropriando-se de rótulos (direita/esquerda) para justificar ações criminosas praticadas contra seres humanos.
Assim, agrupamentos sociais radicais e antidemocráticos tentam naturalizar a xenofobia, o racismo, o preconceito, a homofobia, a intolerância, a misoginia, a calúnia e tantas outras formas de discriminação que pensávamos já estarem erradicadas nas sociedades plurais e protegidas pela lei.
Desta forma, o desrespeito à diversidade, o extermínio e a segregação de pessoas que pensam diferente torna-se uma prática corrente, desafiando cartas constitucionais que asseguram a liberdade e a igualdade entre todos.
Embora tenha havido diversas tentativas de dividir o povo brasileiro entre ricos e pobres, negros e brancos, capitalistas e comunistas, héteros e homossexuais, católicos e evangélicos, ateus e cristãos, patrões e empregados, petralhas e coxinhas, vândalos e bonzinhos, civis e militares, esquerda e direita, o fato é que até agora a nação se mantinha unida e refratária a qualquer iniciativa que fraturasse a identidade geográfica, cultural, social, econômica e política do Brasil.
Não mais...
Em nosso país, reconhecido pela pluralidade e respeito pelas diversas manifestações da fé, vemos o governo de plantão desafiar e violar a Constituição ao pregar a disseminação do ódio e da intolerância com a Bíblia na mão, interpretando e distorcendo o legado símbolo da fé cristã que é o amor, a igualdade, a liberdade, a fraternidade e a solidariedade.
O Dr. Drauzio não se deixa contaminar, navega e sempre navegou contra a corrente. É um homem a frente do seu tempo...Lembra a memorável Dra. Nise da Silveira, desprezada no seu tempo, eternizada na história.
Poeminho do Contra
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
Mario Quintana
Mas, tenho certeza que o senhor já os perdoou. Eles não sabem o que fazem...
A essência do humanismo é matéria prima presente no seu DNA.
Como afirma em sua nota de esclarecimento - não precisava - quando em contato com seres humanos vivendo no limite do impossível - carceragem, aids, sífilis, tuberculose e doenças contagiosas de toda espécie, o senhor nunca pergunta o que levou aquele ser humano até ali.
O que importa naquele momento é demonstrar afeto e compartilhar um pouco das dores, dos sentimentos e dos sonhos interrompidos daquelas vidas que estão segregadas em decorrência de suas escolhas.
Mas não é só. Na condição de notável oncologista, o Dr. dedica sua vida às pessoas que convivem com doenças tidas como fatais, crianças e adultos, exercendo sua profissão de forma abnegada, altruísta e profissional, distribuindo afeto e compartilhando um pouco das dores, dos sentimentos e dos sonhos interrompidos daquelas vidas que, na maioria esmagadora dos casos, não tiveram escolha.
A redundância observada foi necessária para enfatizar que o senhor não mudou, dispensa sempre o mesmo tratamento para todos.
Neste andar, jamais haverá assepcia de pessoas e sempre os seres humanos estarão em primeiro lugar, porque o Doutor não trata e não acolhe as escolhas das pessoas, trata e acolhe os seres humanos em estado de necessidade.
Durante a maior parte da minha vida, oncologia era somente uma especialidade médica.
Hoje, quando passo horas dentro do Cepon - Centro de Pesquisas Oncológicas, Florianópolis/SC, excelência em atendimento público, acompanhando consultas e a quimioterapia que a minha amada esposa está fazendo, constato que a permanente demonstração de afeto vinda de outros pacientes e de todos os funcionários, mais o tratamento dispensado pelo corpo médico e pelas insuperáveis enfermeiras amenizam a dor, regam a esperança, renovam as energias, valorizam a vida e alimentam o frágil ser humano que resiste para sobreviver.
Desafios fazem parte do cotidiano deste humanista médico que dedica sua vida ao próximo. Assim, resiliente e de caráter inquebrantável, tenho certeza que continuará sua luta em prol da humanidade.
Serve esta modesta manifestação para declarar minha solidariedade ao Dr. Drauzio Varella diante do injusto e covarde ataque à sua honra.
Com respeito e admiração.
Respeitosamente,
Marco Erlandi Orsi Sanches