Um preconceito negativo: uma grave distorção dos direitos humanos ou o discurso "antidireitos humanos".
Um preconceito com grave carga negativa que vem sendo difundido, desde os anos 80, acerca dos direitos humanos, é a idéia distorcida que insiste em descrever os direitos humanos como instrumento de "proteção dos bandidos contra a polícia".
Tal deturpação vem quase sempre acompanhada das retóricas perguntas: "e os direitos humanos das vítimas?" ou "por que esse pessoal dos direitos humanos não defende as vítimas desses bandidos?".
Tal preconceito carrega dois problemas. Primeiro: a tentativa de aprisionar os direitos humanos às questões meramente policiais e, segundo, em conseqüência, estigmatizar os defensores dos direitos humanos como "protetores de bandidos".
Ora, as questões policiais enfrentadas pelos direitos humanos constituem apenas pequena parte (situada no âmbito dos direitos civis) de seu amplo conteúdo. José Reinaldo de Lima Lopes [19] esclarece que os casos de defesa dos direitos humanos de meados da década de 70 para cá só parcialmente se referem a questões policiais.
A sua imensa maioria – não noticiada pela grande imprensa – esteve concentrada nas chamadas questões sociais (direito à terra e à moradia, direitos trabalhistas e previdenciários, direitos políticos, direitos à saúde, à educação, etc).
E no decorrer da segunda metade da década de 80, principalmente nos anos de 1985 a 1988, as organizações de defesa dos direitos humanos multiplicaram informações sobre a Constituição e a Constituinte, inclusive apresentando proposta (incluída no regimento interno do Congresso Constituinte) de emendas ao projeto de Constituição por iniciativa popular.
Assim, a tentativa de restringir os direitos humanos às questões policiais é, senão carregada de ignorância quanto ao amplo conteúdo e alcance dos direitos humanos, motivada de má-fé por grupos de poder historicamente obstruidores do irreversível processo evolutivo dos direitos humanos.
Quanto ao questionamento referente às vítimas, José Reinaldo de Lima Lopes [20] também esclarece que os direitos humanos buscam defender a pessoa humana não de um indivíduo qualquer, isolado, atomizado, mas do exercício abusivo do poder, principalmente das instituições do poder político, econômico, social e cultural.
Ainda segundo José Reinaldo de Lima Lopes [21], a expressão direitos humanos refere-se aos conflitos entre as pessoas humanas e as organizações de poder: o Estado, o mercado, organizações burocráticas, impessoais, havendo sempre uma situação de desequilíbrio estrutural de forças entre a vítima e o violador, sendo aquela permanente e estruturalmente subordinada a este.
Assim, a relação de conflito criminoso x polícia é enxergada pelos direitos humanos como relação pessoa humana (criminoso) x Estado (polícia), não sendo permitido ao Estado (polícia) abusar do poder (prisões ilegais, torturas, etc) contra as pessoas (mesmo consideradas "criminosas").
Deste modo, temos uma questão de direitos humanos quando se tem uma relação de poder geradora de desigualdade e discriminação, em que a parte hipossuficiente/vulnerabilizada desta relação é discriminada, subjugada, coagida, submetida, forçada abusivamente aos interesses e/ou vontades da outra parte, como nas relações de poder entre mercado x consumidor , homem x mulher (relações de gênero), adulto x criança, branco x preto, rico x pobre, hetero x homo, sadio x doente, pessoa não-deficiente x pessoa com deficiência, pessoa jovem x pessoa idosa e até mesmo na relação espécie humana x outras espécies.
Em todas essas relações de poder, os direitos humanos buscam a defesa da parte hipossuficiente/vulnerabilizada, sendo, portanto direitos das vítimas, das vítimas de abuso de poder.
CANÇADO TRINDADE enfatiza:
O Direito dos Direitos Humanos não rege as relações entre iguais; opera precisamente em defesa dos ostensivamente mais fracos. Nas relações entre desiguais, posiciona-se em favor dos mais necessitados de proteção. Não busca um equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar os efeitos do desequilíbrio e das disparidades. Não se nutre das barganhas da reciprocidade, mas se inspira nas considerações de ordre public em defesa dos interesses superiores, da realização da justiça. É o direito de proteção dos mais fracos e vulneráveis, cujos avanços em sua evolução histórica se têm devido em grande parte à mobilização da sociedade civil contra todos os tipos de dominação, exclusão e repressão. Neste domínio de proteção, as normas jurídicas são interpretadas e aplicadas tendo sempre presentes as necessidades prementes de proteção das supostas vítimas ". [22]
Logo, os direitos humanos não são neutros, mas tomam partido da pessoa humana e buscam proteger, promover e zelar pela sua dignidade, eis que qualquer desrespeito à pessoa humana (independentemente de sua condição) significa amesquinhar, empobrecer e desrespeitar toda a humanidade, porquanto cada pessoa humana, em sua imagem, reflete toda a humanidade.
Fonte: BORGES, Alci Marcus Ribeiro. Direitos humanos: conceitos e preconceitos. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1248, 1 dez. 2006 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9225>. Acesso em: 13 out. 2013.